domingo, 2 de abril de 2017

VÁ EM PAZ, JOÃO


   Acho admirável os escritores que criam no fio da navalha, dando a impressão de se cortarem a cada parágrafo, João Gilberto era assim

   O escritor João Gilberto Noll morreu na última terça-feira sozinho, em seu apartamento em Porto Alegre. Morreu como viveu, até mesmo porque a solidão é um tema recorrente em sua obra. 
   Dele li alguns livros, o suficiente para compreender que estava diante de uma obra impactante, escrita de forma inusitada: lirismo, coreografia de palavras associadas a um sentido cáustico para descrever a vida. Nos seus livros amor é amor, sexo é sexo, da forma mais crua que é possível narrar p instinto essencial em tomadas cinematográficas que revelam o amor hetero ou homossexual. Amor entre moradores de rua, amor de aventureiros que se jogam na selva para encontrar alguma coisa que os faça sentirem-se vivos ou aplacar a dor, aquela velha dor da existência que alguém profundamente descreve como “angústia”, “carência” ou “falta”, a falta que a psicanálise aponta muitas vezes como condição que nos faz projetar no outro sentido que nunca alcançamos. Algo assim como um buraco negro. 
   Acho admiráveis escritores que criam no fio da navalha, dando a impressão de se cortarem a cada parágrafo. Os cortes, suturas e cicatrizes de Noll estão entre os momentos mais importantes da literatura nacional. 
   Dele guardo um encontro no Festival Literário Londrix. Era 2008, ele era o principal convidado daquela edição. Fez a palestra no antigo edifício Júlio Fuganti, plateia lotada às 15 horas de um sábado modorrento. Ele flou sobre sua literatura sem muito entusiasmo, mas sua fala foi marcada pelo conhecimento: conhecimento da vida, conhecimento da literatura, conhecimento dos eventos literários onde as perguntas se repetem e os autores se repetem porque é isso que o público espera deles, até mesmo porque já sabem as respostas para cada pergunta. De vez em quanto, o inusitado rompe a fala. Atira-se no ar uma provocação que tem o efeito de sacudir os acordos de fala e de escuta. Daquela vez, o que me sacudiu foi a leitura que Noll fez sobre sua obra. De repente, pôs-se a ler um trecho de um de seus livros cujo nome me escapa agora a memória. Mas o ritual era intenso, um ritual profundo do autor com sua obra. Ele leu com voz de personagem, uma voz fininha, cheia de entonações, um sotaque difuso, diria um sotaque da alma de alguém que vivia dentro dele. Um antigo personagem, velho conhecido de sua literatura em fúria porque Noll escrevia com fúria, centrado em seus personagens, obcecado por suas histórias, tomado pelos seus enredos. Literatura de entidades, rara, pungente, pulsante, definitiva. 
   Quando acabou, impressionada com aquela voz difusa que habitava o autor, fui para a fila de autógrafos, naquele dia comprei dois livros, um era “Acenos e Afagos’ , considerado pelos críticos seu livro mais incompreendido. Quando cheguei perto dele, não resisti a dizer que sua literatura me pegava pelo lirismo e pelos socos no estômago. Mistura que não me deixa largar seus livros. Ele respondeu: “Acho ótimo que isso aconteça.” Econômico nas palavras, comedido como essas pessoas que não perdem a conexão consigo próprias mesmo no meio da multidão. Noll era um escritor e um ser humano intenso. Seus textos deixam essa impressão como um alarme que soa pela vida. Assim, deixo que seu texto fale de sua intensidade, como a mão que se coloca sobre o coração, sem que seja preciso explicar mais nada. Vá em paz, João, e não precisa dizer que está doendo. 
   “Quando a gente se encontrava você dizia: meu coração tá doendo, toca aqui! Eu tocava no coração com a mão espalmada sobre teu peito e sentia o coração responder: pulsava ali uma outra vida que não a minha, um outro ser vivo no mistério mas tão mineral que eu podia tocar, alisar na minha ternura, apertar com o ódio de quem possui o que não é seu e que no entanto se dá. Um coração apaixonado. O coração pulsava feito uma pomba na mão, batia contra o meu tato todo cheio de fantasia madura ,prestes a ser mordida: eu mordia o seio que guardava o coração você me dizia vem e em cada convite mais uma curva do labirinto se desenhava: eu enfrentava mais uma curva e me perdia mais uma vez ao teu encontro. E cada encontro nos lembrava que o único roteiro é o corpo. O corpo.” (Crônica da jornalista e escritora CÉLIA MUSILLI, celia.musilli@gmail.com páginas 2 e 3, caderno FOLHA 2, coluna CÉLIA MUSILLI, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).

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Comentários

Wanda Cobo

"Maravilha meu amigo, continue nos deliciando com suas ideias." W.D Londrina-Pr


Adilson Silva

Olá Professor José Roberto, Parabéns pelas excelentes matérias , muito bom conhecimento para todos. muita paz e fraternidade. Londrina-Pr

Marcos Vitor Piter

Excelentes e Sabias palavras parabéns Professor um Abraço dos Amigos de Arapongas - PR.

João Costa

Meus parabéns por vc e por tudo que pude ler continue levando este conhecimento p/ todos. Forte abraço! João Batista.
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Meu amigo continue contribuindo com a sua sabedoria. Forte abraço... João Batista 31/10/2013
Daiane C M Santos
Parabéns, muito criativo e inteligente!
Zeze Baladelli
Oi meu amigo,entrei seu blog,parabéns querido,voce é um gentleman,um grande amigo e muito inteligente,desejo que Deus te abençoe mais e mais...super beijo...



MARINA SIMÕES

Caro amigo Roberto, muito obrigada por suas sábias e verdadeiras palavras. Como é bom encontrarmos no nosso dia adia pessoas que comungam nossas idéias, nossas críticas, ou mesmo comentário sobre determinados assuntos. Eu procuro escrever e mostrar mensagens de
fé, de esperança, ou mesmo um alento carinhoso para nós que vivemos um mundo tão cruel, egoísta e caótico. Estou tentando escrever um comentário sobre seus textos. Parabéns, eu os tenho como que a "arquitetura" com as palavras. É um estilo totalmente seu, e meu amigo é simplesmente estimulante. Ele nos faz pensar e isto é muito bom. Um grande abraço. Marina.



JOÃO RENATO
Aqui estou eu novamente é impossivel não entrar aqui para vê estas maravilha por vc postada. Forte abraço do seu amigo hoje e sempre...........

ADALGISA
Parabéns! meu amigo querido!!!Adorei seu blog, mensagens lindas e suaves como a tua persoalidade e seu jeito de ser!!!Abraços e beijos.
TIAGO ROBERTO FIGUEIREDO
Parabéns professor José Roberto seu blog está divino..abs !
JAIRO FERNANDES
Olá, Querido Professor José Roberto! Fiquei muito emocionado com suas mensagens postadas, gostaria muito de revê-lo novamente após muitos anos, você fora meu professor e tenho muita saudade, gostaria que enviasse-me o seu endereço.ʺ Deus te ilumine sempreʺ Pois fazes parte de minha história de vida.
ALICE MARIA
Oi tio.Muito lindo seu cantinho na internet. Tô de olho. Lembro também de algumas coisas lá da Serra, principalmente da venda do vô Rubens. Beijo ,Alice Maria.

WANDA COBO

WANDA COBO

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