De tempos em tempo, devemos visitar as memórias para reciclar a vida
Lembro-me bem da meia dúzia de amigos que tive na infância, todos morando na mesma rua, compartilhando bolas, bicicletas e até cachorros. Por sorte, conservei essas amizades e, ainda hoje, tenho contato com aqueles que fizeram minha infância, menos solitária já que fui a caçula de uma família de três irmãos e entre mim e o mais velho há uma diferença de doze anos. Amigos de verdade são esses que ficam na nossa vida como uma tatuagem, como parceiros que não se largam e, ainda que se passem dez ou quinze anos, podemos contar com eles.
Num tempo em que reunimos até cinco mil “amigos” nas redes sociais, também consegui parcerias sinceras, pessoas que passaram a fazer parte do meu cotidiano, mesmo que por meio digital. De uma delas ouvi a máxima: “Não é por ser física que a amizade não é real.” No que concordamos plenamente. Penso que haverá um mundo cada vez mais virtual onde cabem nossas emoções sutis, ainda que o contato físico, a presença, seja tão importante quanto a casa da família para onde a gente volta quando precisa de calor humano.
Tem amigos que também se perdem pela distância e pelo tempo, aqueles que ficam na lembrança como um sorriso tímido, um modo especial de passar a mão nos cabelos ou até mesmo um cheiro de maracujá que nos acompanha como se ainda passeássemos num quintal da infância.
De tudo isso, o mais triste são os amigos que se separam por uma circunstância adversa ou até mesmo a morte, desses guardo algumas memórias como a última música que cantamos juntos ou a festa na qual achávamos que seríamos eternos. Deste quadro, fazem parte pai e mãe sempre que chega o Natal ou a festa de aniversário de quem não está mais aqui. Por uma razão inexplicável, quando lembro dos meus pais eles ressurgem mais jovens na memória, minha mãe sorridente, com seu cabelo penteado para trás e vestidos, que ela mesma fazia combinando tecidos e cores. De meu pai guardo a calma misturada a uma inteligência viva, era um homem racional que expressava afetividade a seu modo. Foi ele que me ensinou a olhar o céu e observar estrelas. Meio astrônomo, meio poeta, seu Antonio me motivou a gosta das coisas misteriosas.
Meus amigos de infância às vezes me enviam notícias, prometi almoçar com um deles dias desses em outra cidade, onde nascemos. Imagino a emoção de revê-lo depois de tantos anos e o que teremos a contar um para o outro num tempo que é diferente daquele, quando jogávamos bola e andávamos de bicicleta seguidos pos seu cachorro Pequim, um fox paulistinha que não saí de perto da gente e latia a qualquer sinal de perigo.
De tempos em tempos, devemos visitar a memória para reciclar a vida, retomar o sentimento de amizade que nos faz bem num mundo sem sempre feito de delicadezas. Agradecer a oportunidade de ter vivido momentos impagáveis, tão simples como comer doce de abóbora ou subir no galho mais alto da ameixeira.
Tem também os amigos de quem nos separamos para sempre por alguma briga séria, um atrito que faz naufragar a amizade. Ainda assim, desses guardo as melhores lembranças, porque na vida somos nós que escolhemos o que queremos guardar como um tesouro íntimo que nos faz superar a raiva momentânea. Não sou do tipo que coleciona mágoas, embora me comporte muitas vezes como uma leoa. Passada a desavença sempre sobram cacos de amizade para colar como quem faz um mosaico numa nostalgia dos diabos, rogando a todos os santos para que nos concedam sempre a virtude do perdão e da reconciliação. A vida é a arte de colar caquinhos. (Crônica de CÉLIA MUSILLI, jornalista e escritor, celia.musilli@gmail.com caderno FOLHA 2, página 2, coluna CÉLIA MUSILLI, 10 e 11 de junho de 2017, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).
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