domingo, 25 de junho de 2017

DYLAN & THOMAS


   Um deles é o fox paulistinha magro e nervoso, o outro um cão gordo, calmo e de língua azul.



   No quarto andar do prédio tem um cachorro chamado Dylan. No oitavo tem outro chamado Thomas. Os donos não sabem, mas se juntassem os dois cachorros teríamos Dylan Thomas, nome de um poeta inglês que é uma das sementes da Geração Beat. 
   O cão Dylan é um fox paulistinha, magro e nervoso, rebelde como o compositor americano recentemente homenageado com o Nobel de Literatura. Dylan costuma latir para desconhecidos ou quando vê situações de risco, como atravessar a rua com a dona lhe conduzindo entre os carros. Revoltado com a coleira poderia bradar como Bob Dylan na música “Silvio”: “Quando eu venho, não me atiram nenhum osso/ Eu sou um velho procurando por uma casa/Se você não gosta disso, pode me deixar sozinho.”
   Imagino o cachorro da vizinha cantando a música e penso que ele ficaria feliz sem a coleira, como também recusaria o Nobel por não se adaptar a esse mundo de protocolos e discursos. Mas posso estar enganada. 
   Assim que Dylan atravessa a rua, vem Thomas, o outro cão que é um Chow Chow de língua azul. Cães de língua azul são absolutamente poéticos por sua conta e risco. Nunca leram Bukowski ou Nuno Júdice – dois autores que celebraram o azul em sua obra – mas trazem na ponta da língua a cor que por si só é poesia. 
   Ao contrário de Dylan, Thomas é um cão branco, calmo, gordo e peludo, gosto de vê-lo no Calçadão passeando com seu dono, um rapaz que considero paciente. Quando o cachorro estanca em frente ao Banco do Brasil, o dono lhe explica: “Não, Thomas, hoje não vamos sacar dinheiro”. E o cão segue seu rumo com a perfeita compreensão de que naquele dia não irá até o caixa eletrônico nem ficará na porta, onde passo por ele com receio que ele estranhe minhas pernas com meias pretas e compridas. 
   Thomas nada tem a ver com o poeta inglês, seu xará, reconhecido por sua verve angustiada e seu alcoolismo. O verdadeiro Dylan Thomas era tão talentoso quanto dramático, sua produção é um grande questionamento pontuado por uma crise existencial sem saída. 
“Qual a métrica do dicionário?/A medida do Gênesis?/O sexo da fugaz centelha?/A sombra sem forma?/A forma do eco faraônico?/(A forma da minha idade que censura o sussurro ferido)”
   Ou então: “O amor é um reflexo das feições efêmeras/Que se cala abocanhado pela noite num campo rodeado de pães
   Penso que os cães também têm lá sua angústia, mas se contentam em uivar à noite, embora, cada vez mais urbanos, tenham perdido também essa manifestação de solidão que faz parte do mundo dos homens e dos animais.
   Nunca ouvi Dylan ou Thomas uivando. Parecem perfeitamente adaptados à sua condição de cachorros de apartamento, cuja vizinhança decerto não toleraria latidos e lamúrias. Vivemos a sociedade do conformismo. Criamos uma civilização na qual a manifestação da dor é aplacada com medicamentos que tiram de nós essa porção humana de sentir todas as emoções e manifestá-las. Vivemos em condomínios onde moram cães e pessoas que não uivam, onde todos são felizes ou tem um dono que lhes garante o sossego de passear de manhã tão cordiais quanto Dylan e Thomas, vestidos com roupinhas de pet shop e suas coleiras. Esse conforto me faz pensar que há muito tempo os cães deixaram de ser cães, assim como os humanos deixaram de ser humanos, mal expressando sua rebeldia embutidas nas letras e poemas dos últimos inconformados. O mundo nos condomínios nunca será como antes, assim como Dylan e Thomas. (Crônica de CÉLIA MÚSILLI, celia.musilli@gmail.com escritora e jornalista, caderno FOLHA 2, página 2, coluna CÉLIA MUSILLI, 24 e 25 de junho de 2017, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).

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Comentários

Wanda Cobo

"Maravilha meu amigo, continue nos deliciando com suas ideias." W.D Londrina-Pr


Adilson Silva

Olá Professor José Roberto, Parabéns pelas excelentes matérias , muito bom conhecimento para todos. muita paz e fraternidade. Londrina-Pr

Marcos Vitor Piter

Excelentes e Sabias palavras parabéns Professor um Abraço dos Amigos de Arapongas - PR.

João Costa

Meus parabéns por vc e por tudo que pude ler continue levando este conhecimento p/ todos. Forte abraço! João Batista.
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Meu amigo continue contribuindo com a sua sabedoria. Forte abraço... João Batista 31/10/2013
Daiane C M Santos
Parabéns, muito criativo e inteligente!
Zeze Baladelli
Oi meu amigo,entrei seu blog,parabéns querido,voce é um gentleman,um grande amigo e muito inteligente,desejo que Deus te abençoe mais e mais...super beijo...



MARINA SIMÕES

Caro amigo Roberto, muito obrigada por suas sábias e verdadeiras palavras. Como é bom encontrarmos no nosso dia adia pessoas que comungam nossas idéias, nossas críticas, ou mesmo comentário sobre determinados assuntos. Eu procuro escrever e mostrar mensagens de
fé, de esperança, ou mesmo um alento carinhoso para nós que vivemos um mundo tão cruel, egoísta e caótico. Estou tentando escrever um comentário sobre seus textos. Parabéns, eu os tenho como que a "arquitetura" com as palavras. É um estilo totalmente seu, e meu amigo é simplesmente estimulante. Ele nos faz pensar e isto é muito bom. Um grande abraço. Marina.



JOÃO RENATO
Aqui estou eu novamente é impossivel não entrar aqui para vê estas maravilha por vc postada. Forte abraço do seu amigo hoje e sempre...........

ADALGISA
Parabéns! meu amigo querido!!!Adorei seu blog, mensagens lindas e suaves como a tua persoalidade e seu jeito de ser!!!Abraços e beijos.
TIAGO ROBERTO FIGUEIREDO
Parabéns professor José Roberto seu blog está divino..abs !
JAIRO FERNANDES
Olá, Querido Professor José Roberto! Fiquei muito emocionado com suas mensagens postadas, gostaria muito de revê-lo novamente após muitos anos, você fora meu professor e tenho muita saudade, gostaria que enviasse-me o seu endereço.ʺ Deus te ilumine sempreʺ Pois fazes parte de minha história de vida.
ALICE MARIA
Oi tio.Muito lindo seu cantinho na internet. Tô de olho. Lembro também de algumas coisas lá da Serra, principalmente da venda do vô Rubens. Beijo ,Alice Maria.

WANDA COBO

WANDA COBO

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