sábado, 6 de agosto de 2016

UM ENSAIO SOBRE A DOR


   Esse sentimento é tão importante porque alerta sobre
algo que não vai bem. E não só no físico mas também no emocional 

   UM PLANTÃO de 14 horas num final de semana em um pronto-socorro municipal é garantia de fortes emoções. Estudante de medicina, eu participava desse treinamento com satisfação, pois era certeza de bons aprendizados, além das tais emoções. Os acadêmicos eram responsáveis pela recepção dos pacientes, pela triagem e encaminhamento aos médicos e por realizar tratamentos padronizados, como suturas, além de atender mulheres com fortes enxaquecas, homens com dores no peito, crianças com asma, e até bêbados que mal se aguentavam em pé, entre outros trabalhos.
   E havia também os casos curiosos, como o pescador que engoliu um peixe enquanto nadava no rio e este ficou entalado em sua garganta, mexendo-se freneticamente. Ou o garoto que enfiou uma ervilha no ouvido e não contou para ninguém até surgir uma inflamação. 
   Independentemente da especialidade que seguiriam depois, os professores recomendavam aos alunos que não perdessem a oportunidade dessa formação em medicina de urgência. Trabalhar em um pronto-socorro requer, além de conhecimento técnico, velocidade de reação, espírito de equipe, resistência física e um bom estômago. Das experiências que colecionei, muitas me marcaram. Mas uma em particular me ensinou muito mais do que medicina. Foi uma lição de vida.
   Era o cair da tarde de um sábado frio em Curitiba, daqueles que combinam com pinhão na brasa e vinho quente com gemada. Eu estava com colegas na calçada em frente à porta de recepção, para onde são encaminhadas as emergências, quando de um carro desceu apressado um casal com um garoto embrulhado em um cobertor. O menino parecia bem. Já o casal estava bastante alterado. 
  Eu e um colega os atendemos enquanto um terceiro ia buscar uma maca de rodas. “Ele se queimou, se queimou...”, dizia o pai. Quando lhe perguntei onde era a queimadura, ele apontou as nádegas, dizendo que o menino havia sentado sobre a chapa quente de um fogão a lenha. Esse tipo de fogão é comum nas cidades frias do Sul, e, com frequência, serve para aquecer a casa, não só para cozinhar. 
   Empurrando a maca, eu e meus colegas nos olhávamos com espanto; não pela reação dos pais em desespero, mas pela calma do garoto, que parecia não demonstrar nenhuma dor. Quando perguntei seu nome, ele reagiu como se estivesse se divertindo com todo aquele agito. Ficamos tranquilos, achando que havia um exagero histérico por parte dos pais. Mas a impressão se desfez quando colocamos o menino na maca de exame e tiramos os panos que o envolviam. A queimadura era séria, muito séria. A tal ponto de não trata-la sem chamar um dos professores de plantão. 
   O garoto acabou sendo levado para o centro cirúrgico, pois havia tecido morto a remover, infecção a evitar, e era evidente que depois ele precisaria de um transplante de pele. Ele tinha uma queimadura de terceiro grau nos glúteos e em boa parte das coxas posteriores. Qualquer um estaria gritando ou desfalecido. Como podia ele estar calmo, como se nada sentisse?
   Depois de mandá-lo para o centro cirúrgico, o professor nos chamou para conversar. “O que vocês acabaram de ver é um caso raro de Síndrome de Riley-Day.” Como nenhum de nós tinha ouvido falar de tal síndrome, ele nos explicou tratar-se de uma anomalia genética rara: nela, o portador tem uma desordem neurológica que afeta os músculos sensoriais. “Ele não sente dor, e essa é sua desgraça”, filosofou.
   Eu nunca tinha pensado dessa forma. Jamais me ocorrera que não sentir dor poderia ser uma desgraça. Sempre achei que isso era bom. O professor colocou o fato na perspectiva correta. Aquele menino sentou sobre uma chapa quente e não tinha como sentir a dor salvadora que fara com que ele imediatamente saísse daquela fonte de calor intenso. A consequência foi uma lesão que marcaria seu corpo para sempre. Definitivamente, a dor é uma bênção. Não senti-la é uma maldição. 
   Nunca mais soube daquele pacientezinho curitibano. Torço para que ele tenha encontrado uma maneira de conviver com sua síndrome e que tenha levado uma vida razoavelmente normal. Mas nunca me esqueci dele, e costumo me lembrar daquele sábado em situação em que a dor me acomete, principalmente quando essa dor não é física. Quando o que dói é a alma.
   Assim como a dor física funciona como um alerta e provoca uma reação imediata, as dores emocionais, como a angústia, a tristeza, a raiva, também servem para nos dizer que algo não vai bem, e que temos que sair de cima da chapa quente. 
   A pergunta é: por que demoramos mais para reagir às dores psicológicas? Em uma ocasião, levei meses para perceber que uma ansiedade imensa que me preenchia o peito tinha causa conhecida e bem sabida: uma relação daquelas bem destrutivas, recheadas de ciúmes, desconfianças, discussões sem fim. Só eu parecia não saber. Na verdade eu me negava a reconhecer que aquele sofrimento todo não justificava os possíveis bons momentos. A relação era desastrosa e não era possível continuar assim. Nada contra a pessoa. O problema era a reação em si. 
   Em geral, as chapas quentes das dores emocionais são as relações. E eu não estou falando só de relação entre casais. Também entram nessa lista as relações entre colegas no trabalho, entre amigos do grupo, parentes e o que tem maior potencial de causar uma dor que não é detectada: o trabalho. 
   O número de pessoas frustradas com seu trabalho ou sua profissão não é pequeno, o que nos leva a perguntar por que elas não mudam de atividade, ou de local de trabalho. Será que não percebem que é dali que vem a causa de sua infelicidade? Será que acham que a vida é assim mesmo? Que as coisas vão melhorar, basta ter paciência?
   A tal síndrome da falta de dor me ensinou que não podemos fingir que a dor não existe, que ela é um alarme, e que, se ela é natural, não precisa ser normal. Devemos combatê-la. Mas cuidado: analgésicos ajudam, porém são remédios sintomáticos, não eliminam as causas. Às vezes é preciso ir mais fundo, pesquisar com coragem, não negar as evidências, cortar, purgar, extrair, e também se permitir chorar um pouco. (EUGENIO MUSSAK
 já escreveu neste espaço sobre vários tipos de dores, e diz que também sentiu todas elas, páginas 46 e 47, REVISTA VIDA SIMPLES , Setembro 2015, edição 162, impressa na Gráfica Abril- SP).

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Comentários

Wanda Cobo

"Maravilha meu amigo, continue nos deliciando com suas ideias." W.D Londrina-Pr


Adilson Silva

Olá Professor José Roberto, Parabéns pelas excelentes matérias , muito bom conhecimento para todos. muita paz e fraternidade. Londrina-Pr

Marcos Vitor Piter

Excelentes e Sabias palavras parabéns Professor um Abraço dos Amigos de Arapongas - PR.

João Costa

Meus parabéns por vc e por tudo que pude ler continue levando este conhecimento p/ todos. Forte abraço! João Batista.
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Meu amigo continue contribuindo com a sua sabedoria. Forte abraço... João Batista 31/10/2013
Daiane C M Santos
Parabéns, muito criativo e inteligente!
Zeze Baladelli
Oi meu amigo,entrei seu blog,parabéns querido,voce é um gentleman,um grande amigo e muito inteligente,desejo que Deus te abençoe mais e mais...super beijo...



MARINA SIMÕES

Caro amigo Roberto, muito obrigada por suas sábias e verdadeiras palavras. Como é bom encontrarmos no nosso dia adia pessoas que comungam nossas idéias, nossas críticas, ou mesmo comentário sobre determinados assuntos. Eu procuro escrever e mostrar mensagens de
fé, de esperança, ou mesmo um alento carinhoso para nós que vivemos um mundo tão cruel, egoísta e caótico. Estou tentando escrever um comentário sobre seus textos. Parabéns, eu os tenho como que a "arquitetura" com as palavras. É um estilo totalmente seu, e meu amigo é simplesmente estimulante. Ele nos faz pensar e isto é muito bom. Um grande abraço. Marina.



JOÃO RENATO
Aqui estou eu novamente é impossivel não entrar aqui para vê estas maravilha por vc postada. Forte abraço do seu amigo hoje e sempre...........

ADALGISA
Parabéns! meu amigo querido!!!Adorei seu blog, mensagens lindas e suaves como a tua persoalidade e seu jeito de ser!!!Abraços e beijos.
TIAGO ROBERTO FIGUEIREDO
Parabéns professor José Roberto seu blog está divino..abs !
JAIRO FERNANDES
Olá, Querido Professor José Roberto! Fiquei muito emocionado com suas mensagens postadas, gostaria muito de revê-lo novamente após muitos anos, você fora meu professor e tenho muita saudade, gostaria que enviasse-me o seu endereço.ʺ Deus te ilumine sempreʺ Pois fazes parte de minha história de vida.
ALICE MARIA
Oi tio.Muito lindo seu cantinho na internet. Tô de olho. Lembro também de algumas coisas lá da Serra, principalmente da venda do vô Rubens. Beijo ,Alice Maria.

WANDA COBO

WANDA COBO

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