terça-feira, 23 de agosto de 2016

O CAMINHÃO DA MUDANÇA


   As estradas confabulam com as mobílias, pedem que segurem-se nas curvas, que não pule fora em caso de acidente

   Os caminhões de mudança levam histórias pelo caminho. Entram nas cidades com pedaços de sonhos, esperanças, frustrações, lembranças. Tem a cadeira do filho quando era bebê, o guarda-roupa com cabides vazios, a mesa onde o avô jogava baralho, o fogão que guarda segredos de cozinha. 
   Se abríssemos as portas do caminhão de mudança, talvez saltassem deles memórias que ficaram na capital, conversas que se espalharam pelo interior quando a moça voltou da lua de mel decepcionada com o casamento. 
   Os caminhões de mudança misturam histórias: tem a de Paulo numa metade, na outra de Ana porque os dois se mudaram para a mesma cidade e o que sobrou de espaço entre as mobílias foi preenchido por um acordo que acabou em amizade e cada um pagou a sua parte. 
   O caminhão de mudança tem um sorriso na carroceria, mas muita gente chorou quando fez a mala e se despediu da cidade onde nasceu ou embalou os poucos móveis que o filho levou para outra cidade, onde montou a república. 
   No caminhão de mudança juntam-se cadeiras, espelhos quadrados, armário com cheiro de pinho, caixas com lustra-móveis, panelas, raladores de queijo, casacos de frio, a manta que passou de mãe para filho. Os ventiladores giram a cada curva ainda que ninguém esteja perto para aproveitar o vento. Os retratos dialogam. Os quadros sentem saudade das paisagens livres e encolhem-se em cores aprisionadas nas caixas. 
   Tem também os objetos que aproveitam aquela estranha liberdade, brinquedos que esqueceram ligados, vídeos que ninguém mais assiste e ainda assim são conservados como fios de memória ou antes de captar visões perdidas. 
   Os caminhões de mudança cruzam o país de norte a sul, identificam montanhas, conhecem as praias, ficam ofegantes nos grandes centros urbanos, atrapalham o trânsito ao meio-dia, estacionam no lugar errado. 
   Quando abre as portas a família inteira os rodeia, querendo saber se vieram a TV, os lençóis, as garrafas de vinho, os roupões de banho, a poltrona azul, o abajur sem a cúpula, a almofada indiana, o relógio de corda, todos devidamente embalados para aguentarem os 500 quilômetros entre São Paulo e Londrina, os mais de 5 mil quilômetros entre o Oiapoque e o Chuí que consomem sete dias e quatro horas inteiras de viagem. 
   Entre a nova e a velha casa, os motoristas dormem mal mas seguem mesmo cansados, almoçam nos restaurantes dos postos de combustível, saindo sem camisa como heróis da BR2, aquela que alguém inaugurou em 1951, e onde até hoje faltam serviços de terraplenagem entre trevos, viadutos, pontes e túneis. 
   Até por isso, as estradas confabulam com as mobílias, pedem que aguentem o tranco, que segurem-se nas curvas, que não pulem fora em caso de acidente, que não se separem como os casais por excesso ou falta de velocidade. Os caminhões fazem um zigue-zague de rotas e vidas que vão de norte a sul, de leste a oeste, num mapa de histórias individuais rodando pelo Brasil.
   Quando os móveis chegam, as casas os consomem com a avidez dos espaços vazios, transformando-se enfim numa verdadeira habitação. Porque só os móveis têm a cara do dono, seus cheiro guardado na cabeceira da cama, um atestado de identidade que se inscreve no encosto torto da poltrona, carregada de cidade em cidade como um emblema aventureiro da mudança ou prenúncio da transformação. (Crônica da jornalista e escritora CÉLIA MUSILLI celiamusilli@gmail.com página 2, caderno FOLHA 2, coluna CÉLIA MUSILLI, domingo, 21 de agosto de 2016, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).

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Comentários

Wanda Cobo

"Maravilha meu amigo, continue nos deliciando com suas ideias." W.D Londrina-Pr


Adilson Silva

Olá Professor José Roberto, Parabéns pelas excelentes matérias , muito bom conhecimento para todos. muita paz e fraternidade. Londrina-Pr

Marcos Vitor Piter

Excelentes e Sabias palavras parabéns Professor um Abraço dos Amigos de Arapongas - PR.

João Costa

Meus parabéns por vc e por tudo que pude ler continue levando este conhecimento p/ todos. Forte abraço! João Batista.
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Meu amigo continue contribuindo com a sua sabedoria. Forte abraço... João Batista 31/10/2013
Daiane C M Santos
Parabéns, muito criativo e inteligente!
Zeze Baladelli
Oi meu amigo,entrei seu blog,parabéns querido,voce é um gentleman,um grande amigo e muito inteligente,desejo que Deus te abençoe mais e mais...super beijo...



MARINA SIMÕES

Caro amigo Roberto, muito obrigada por suas sábias e verdadeiras palavras. Como é bom encontrarmos no nosso dia adia pessoas que comungam nossas idéias, nossas críticas, ou mesmo comentário sobre determinados assuntos. Eu procuro escrever e mostrar mensagens de
fé, de esperança, ou mesmo um alento carinhoso para nós que vivemos um mundo tão cruel, egoísta e caótico. Estou tentando escrever um comentário sobre seus textos. Parabéns, eu os tenho como que a "arquitetura" com as palavras. É um estilo totalmente seu, e meu amigo é simplesmente estimulante. Ele nos faz pensar e isto é muito bom. Um grande abraço. Marina.



JOÃO RENATO
Aqui estou eu novamente é impossivel não entrar aqui para vê estas maravilha por vc postada. Forte abraço do seu amigo hoje e sempre...........

ADALGISA
Parabéns! meu amigo querido!!!Adorei seu blog, mensagens lindas e suaves como a tua persoalidade e seu jeito de ser!!!Abraços e beijos.
TIAGO ROBERTO FIGUEIREDO
Parabéns professor José Roberto seu blog está divino..abs !
JAIRO FERNANDES
Olá, Querido Professor José Roberto! Fiquei muito emocionado com suas mensagens postadas, gostaria muito de revê-lo novamente após muitos anos, você fora meu professor e tenho muita saudade, gostaria que enviasse-me o seu endereço.ʺ Deus te ilumine sempreʺ Pois fazes parte de minha história de vida.
ALICE MARIA
Oi tio.Muito lindo seu cantinho na internet. Tô de olho. Lembro também de algumas coisas lá da Serra, principalmente da venda do vô Rubens. Beijo ,Alice Maria.

WANDA COBO

WANDA COBO

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