FALTA INSTRUÇÃO, SOBRA TABU

   Questão do Enem sobre a mulher põe em confronto a informação e  cultura

   Impossível não comentar o Enem, as discussões radicais acerca de coisas que eu considerava superadas como o papel da mulher na sociedade. Os pastores-deputados Marco Feliciano e Jair Bolsonaro podiam ter passado sem essa, pegou mal tentarem manipular politicamente a questão que colocava uma frase de Simone de Beauvoir para os candidatos: “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Um fragmento clássico dos manuais de feminismo há mais de 50 anos que não discute exatamente a  diversidade macho-fêmea, mas a construção cultural do “ser mulher” que nos relegou durante séculos a um segundo plano.
   Para começar,  a questão era uma entre tantas de Física, Filosofia ou Biologia. Não era nenhum bicho-de-sete-cabeças e de forma alguma “doutrinária” como quiseram  pregar, eles sim, os deputados-pastores. Essas pessoas atrasam o pensamento em cem anos a cada vez que se expressam, enquanto outras põem em dúvida se os “jovens alguma vez leram Simone de Beauvoir”.
   Não é preciso ler tudo de um autor para compreender seu pensamento. Eu digo “to be or not to be”, assim mesmo em inglês,  e qualquer pessoa com cultura mediana sabe que se trata de uma indagação filosófica de Shakespeare, podendo fazer suas próprias ilações, aplicando-as ao seu contexto de vida.
   Além disso, subestima-se o conhecimento dos jovens, sua capacidade crítica, quando se pões em dúvida se uma questão é ou não pertinente. Ao contrário do que muitos pensam, os jovens são absolutamente informados acerca de muitas coisas. Tenho dois filhos universitários, eles me surpreendem quando discutem arte e política, por exemplo, na própria universidade convivem com grupos que tratam de temas que parte da sociedade condena: como a transexualidade e o aborto. Não existe assunto que desconheçam, não existe tema “proibido”, sobre alguns têm opiniões mais avançadas que a vã filosofia dos freios que querem impedir o pensamento.
   Achei também pertinente o tema da Redação este ano:  “Violência contra a mulher”, pode ser absolutamente aplicado ao meio universitário onde também ocorrem abusos e estupros. Toda educação e discussão são necessárias quando se sabe que no Brasil ocorrem, em média, 50 mil estupros por ano. Não é pouco e, certamente, a opinião dos conservadores mudariam se as vítimas fossem suas próprias filhas.
   Fiquei contente em saber que as meninas se saíram bem na redação do Enem. Ao que consta, tiraram de letra um assunto discutido nas redes sociais e que ganhou mais destaque depois do episódio de tentativa de cerceamento  daqueles que não suportam tocar em tabus sem hipocrisia, preferindo falar à boca miúda sobre preconceitos que matam.
   Independentemente de opção política, certos assuntos não podem ser considerados “doutrina”, são fatos amargos do cotidiano precisando de respostas urgentes que os jovens costumam ter muito além das questões do vestibular. O importante é ampliar repertório, criar referências.
   Além disso, quando o assunto é violência contra a mulher, não é preciso ser feminista e ler Simone de Beauvoir para compreendê-lo, basta ser gente. O que não se sabe na teoria, conhece-se, infelizmente, na prática. Só Marco Feliciano e Jair Bolsonaro não sabem disso, porque criticam não para ampliar informação, mas porque são oportunistas. Querem foco. Como aqueles cachorrinhos que arrastam o chinelo na sala para mostrar toda vez que chega visita, eles não perdem a oportunidade de aparecer na mídia. Fariam melhor se procurassem instrução em vez de se transformarem em políticos bizarros. ( celia.musilli@gmail.com  página 4, folha 2, espaço CÉLIA MUSILLI, domingo, 1 de novembro de 2015, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).