sábado, 15 de julho de 2017

LEMBRANÇAS ENGAVETAS


   Algum tempo depois que ela partiu e a casa ficou vazia, a vida incumbiu-me de arrumar os seus pertences. Havia anos que a gente não mexia naquelas gavetas porque não nos pertenciam. Enquanto ela vivesse as lembranças seriam dela, a sua identidade e história deveriam ser preservadas, nada de invasão. Era um bagunça, sim, eram objetos sem sentido, misturas embaraçadas, relíquias sem valor, coisas que a gente não entendiam porque eram remexidas, espalhadas e no fim, enfiadas novamente nas gavetas como se fosse um cofre de preciosidades.
   Mas um dia aquela casa, aqueles móveis e aquelas coisas ficaram sem dono, sem valor, sem afeto. Como uma estranha, a princípio, eu comecei a organizar as gavetas. Costuma-se dizer que, quando organizamos gavetas e armários de nossa casa, organizamos nossa própria vida, queremos botar ordem, recomeçar, reparar os erros, aparar as arestas, limpar e arrumar a alma, literalmente. 
   Mas não foi isso que aconteceu, obviamente por não serem as minhas gavetas com as minhas coisas, embora eu fizesse parte daquela história que ficara ali, sem dono, sem ninguém que se interessasse por ela, que gostasse, que desse valor como “seu”. A cada gaveta que abria, e olhava, e remexia, ia tirando imagens do passado, cheias de significado, como se fosse um filme em preto e branco, enredo complicado uma viagem de idas e vindas, de cores e fumaça, de alegria e de tristeza, Cada objeto inusitado guardamos nas gavetas de nossa vida! Uma vida pela metade, linhas embaralhadas, tampinhas, cartões antigos, calendário marcando um tempo que não volta mais. 
   Aquele chaveiro estranho, fez parte de uma coleção de chaveiros enganchados numa peneira enfeitando a sala; a foto recortada, separando alguém que perdera a importância. E aquele penteado, cruz credo, como se usava isso?
   Vinham papéis amarelados com receitas trocadas na pressa entre amigas e levando o nome delas, só para lembrar. Bilhetinhos de crianças, alunos, com certeza, desenhos infantis, um pé de sapatinho de crochê, umas amostras de toalhinhas da mãe da mãe, pente faltando dentes, papéis de carta, tão em desuso que chega a ser estranho. 
   E as lembranças vão sendo tiradas do baú da saudade: santinhos quebrados, novenas, tercinhos aos montes, santinhos com orações, cartas de parentes, letras de música romântica escrita a mão, um cinzeiro. Fitinhas enrodilhadas de várias cores, retalhos de tecidos lembrando as roupas que usávamos. 
   Meu Deus, é um redemoinho de lembranças, preciso fechar a gaveta para respirar. Por que a gente acumula tantas lembranças 
   No tempo presente não temos percepção do que é a vida, só depois que ela passa. Arrumar uma gaveta não é somente organizar, mas desconstruir uma vida inteira, e ver nos detalhes das coisas os detalhes da própria existência, o significado, o valor, não material, mas que deu impulso e moveu o nosso caminhar. 
   De vez em quando é bom a gente desengavetar lembranças, jogar fora as que nos fizeram sofrer, apreciar as que nos trouxeram alegria e, enquanto estávamos vivos, trancá-las e seguir em frente. 
   Engavetado também, enroladinho um papel amarelo, certamente datilografado por uma máquina Olivetti, ainda encontrei, antes de fechar a gaveta, um bilhetinho que dizia: “Recordar é viver”! (FONTE: Crônica escrita por ESTELA MARIA FREDERICO FERREIRA, leitora da FOLHA, página 2, coluna DEDO DE PROSA, FOLHA RURAL, sábado e domingo,15 e 16 de julho de 2017, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).

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Comentários

Wanda Cobo

"Maravilha meu amigo, continue nos deliciando com suas ideias." W.D Londrina-Pr


Adilson Silva

Olá Professor José Roberto, Parabéns pelas excelentes matérias , muito bom conhecimento para todos. muita paz e fraternidade. Londrina-Pr

Marcos Vitor Piter

Excelentes e Sabias palavras parabéns Professor um Abraço dos Amigos de Arapongas - PR.

João Costa

Meus parabéns por vc e por tudo que pude ler continue levando este conhecimento p/ todos. Forte abraço! João Batista.
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Meu amigo continue contribuindo com a sua sabedoria. Forte abraço... João Batista 31/10/2013
Daiane C M Santos
Parabéns, muito criativo e inteligente!
Zeze Baladelli
Oi meu amigo,entrei seu blog,parabéns querido,voce é um gentleman,um grande amigo e muito inteligente,desejo que Deus te abençoe mais e mais...super beijo...



MARINA SIMÕES

Caro amigo Roberto, muito obrigada por suas sábias e verdadeiras palavras. Como é bom encontrarmos no nosso dia adia pessoas que comungam nossas idéias, nossas críticas, ou mesmo comentário sobre determinados assuntos. Eu procuro escrever e mostrar mensagens de
fé, de esperança, ou mesmo um alento carinhoso para nós que vivemos um mundo tão cruel, egoísta e caótico. Estou tentando escrever um comentário sobre seus textos. Parabéns, eu os tenho como que a "arquitetura" com as palavras. É um estilo totalmente seu, e meu amigo é simplesmente estimulante. Ele nos faz pensar e isto é muito bom. Um grande abraço. Marina.



JOÃO RENATO
Aqui estou eu novamente é impossivel não entrar aqui para vê estas maravilha por vc postada. Forte abraço do seu amigo hoje e sempre...........

ADALGISA
Parabéns! meu amigo querido!!!Adorei seu blog, mensagens lindas e suaves como a tua persoalidade e seu jeito de ser!!!Abraços e beijos.
TIAGO ROBERTO FIGUEIREDO
Parabéns professor José Roberto seu blog está divino..abs !
JAIRO FERNANDES
Olá, Querido Professor José Roberto! Fiquei muito emocionado com suas mensagens postadas, gostaria muito de revê-lo novamente após muitos anos, você fora meu professor e tenho muita saudade, gostaria que enviasse-me o seu endereço.ʺ Deus te ilumine sempreʺ Pois fazes parte de minha história de vida.
ALICE MARIA
Oi tio.Muito lindo seu cantinho na internet. Tô de olho. Lembro também de algumas coisas lá da Serra, principalmente da venda do vô Rubens. Beijo ,Alice Maria.

WANDA COBO

WANDA COBO

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