domingo, 23 de julho de 2017

AGUENTA CORAÇÃO


 
 Eletrocardiograma é o nome mais antipoético que existe para um inventário de sensibilidades

   O médico disse que ela tinha um “sopro no coração”. Recomendou um eletrocardiograma, aquele exame em que nos ligam por uns fiozinhos a uma máquina para medir nosso ritmo, a pulsação do órgão mais sensível do corpo. Ela lembrou de quando era criança e um médico disse que sua irmã também tinha um “sopro”. Achou a expressão tão poética quanto tocar flauta e sentiu uma pontinha de inveja dentro do órgão que denuncia até pensamentos proibidos. 
   Em compensação, segundo esse médico da infância, seu coração era um “reloginho” e ela passou anos imaginando os ponteiros , os eixos, o formato redondo como os carrilhões das igrejas, achando que tinha um coração enorme e podia sair gastando toda sua corda.
   Agora, na véspera do eletrocardiograma, ficou pensando o quanto devia estar avariado seu “reloginho”, com tantos sobressaltos, sustos, amores, aquecimentos e congelamentos sucessivos. Coração de pétalas e de pedra lascada, de fluxos e correntes subterrâneas, histórias sem fim, parceiro diurno e noturno, de sonhos e pesadelos. Uma paisagem vastíssima devia ser mostrada no eletrocardiograma, o nome mais antipoético que existe para um inventário de sensibilidades. 
   Ela pensou que nem queria ser examinada assim, numa corrente de eletricidade, ligada a fios como uma torradeira. E se detectassem seu medo do escuro? Seus pensamentos na solidão? Suas ideias tortas, suas fantasias, seu desejo de morrer de ataque cardíaco, a morte mais justa para um poeta. 
   Já fazia tempo que pensava em não viver muito, mas como um animal jurássico, um fóssil em atos e emoções. Queria viver enquanto se mantivesse aquecida por algum plano, algum roteiro maluco, uma viagem para além dos trópicos, uma odisseia com direito ao conhecimento dos mortais e ao enfrentamento dos deuses.
   Já tinha pensado em voltar à Itaca, a terra mítica, o lar para onde vamos depois das vitórias e derrotas. Então, se morresse subitamente, como uma dama das camélias, estaria de bom tamanho.
   Foi dormir cedo, preparando-se para o exame na manhã seguinte quando seria uma mulher presa aos eletrodos, medindo as pulsações que enfim explicariam o “sopro” que talvez tivesse a ver com o sufocamento noturno do qual vinha se queixando aos médicos. Ela pensava em odisseias, ele suspeitava de apneia, palavra grega que significa “respirar com dificuldade”, coisa que os seres humanos podem suportar por cerca de dois minutos. 
   Ela pensou que não comer bombons não valia nada na hora da morte, nem na hora de usar aquele aparelhinho que iria medir a quantas anda um coração que já foi assaltado por amores bandidos, paixões súbitas, ficando em cárcere privado de emoções, enquanto ela escrevia nas paredes : “Je vis à l’air de Baudelaire.”
   Tanto poesia deu nisso. Amanhã ela teria um mapa da sua odisseia, não sem antes se lembrar de uma das frases mais célebres do livro de Homero para consolar-se como quem reza: “Aguenta coração”. 

A jornalista Célia Musilli está em férias. Neste mês, serão reproduzidas na Folha 2 algumas de suas crônicas já publicadas e que tiveram maior acesso pelos leitores. (FONTE: Crônica escrita pela jornalista e escritora CÉLIA MUSILLI celia.musilli@gmail.com caderno FOLHA 2, página 2, 22 e 23 de julho de 2017, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).

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Comentários

Wanda Cobo

"Maravilha meu amigo, continue nos deliciando com suas ideias." W.D Londrina-Pr


Adilson Silva

Olá Professor José Roberto, Parabéns pelas excelentes matérias , muito bom conhecimento para todos. muita paz e fraternidade. Londrina-Pr

Marcos Vitor Piter

Excelentes e Sabias palavras parabéns Professor um Abraço dos Amigos de Arapongas - PR.

João Costa

Meus parabéns por vc e por tudo que pude ler continue levando este conhecimento p/ todos. Forte abraço! João Batista.
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Meu amigo continue contribuindo com a sua sabedoria. Forte abraço... João Batista 31/10/2013
Daiane C M Santos
Parabéns, muito criativo e inteligente!
Zeze Baladelli
Oi meu amigo,entrei seu blog,parabéns querido,voce é um gentleman,um grande amigo e muito inteligente,desejo que Deus te abençoe mais e mais...super beijo...



MARINA SIMÕES

Caro amigo Roberto, muito obrigada por suas sábias e verdadeiras palavras. Como é bom encontrarmos no nosso dia adia pessoas que comungam nossas idéias, nossas críticas, ou mesmo comentário sobre determinados assuntos. Eu procuro escrever e mostrar mensagens de
fé, de esperança, ou mesmo um alento carinhoso para nós que vivemos um mundo tão cruel, egoísta e caótico. Estou tentando escrever um comentário sobre seus textos. Parabéns, eu os tenho como que a "arquitetura" com as palavras. É um estilo totalmente seu, e meu amigo é simplesmente estimulante. Ele nos faz pensar e isto é muito bom. Um grande abraço. Marina.



JOÃO RENATO
Aqui estou eu novamente é impossivel não entrar aqui para vê estas maravilha por vc postada. Forte abraço do seu amigo hoje e sempre...........

ADALGISA
Parabéns! meu amigo querido!!!Adorei seu blog, mensagens lindas e suaves como a tua persoalidade e seu jeito de ser!!!Abraços e beijos.
TIAGO ROBERTO FIGUEIREDO
Parabéns professor José Roberto seu blog está divino..abs !
JAIRO FERNANDES
Olá, Querido Professor José Roberto! Fiquei muito emocionado com suas mensagens postadas, gostaria muito de revê-lo novamente após muitos anos, você fora meu professor e tenho muita saudade, gostaria que enviasse-me o seu endereço.ʺ Deus te ilumine sempreʺ Pois fazes parte de minha história de vida.
ALICE MARIA
Oi tio.Muito lindo seu cantinho na internet. Tô de olho. Lembro também de algumas coisas lá da Serra, principalmente da venda do vô Rubens. Beijo ,Alice Maria.

WANDA COBO

WANDA COBO

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