sábado, 18 de novembro de 2017

LEMBRANÇA PATERNA


   No meu primeiro livro de leitura havia uma lição que dizia: “Está vendo aquela casinha bonita? É ali que eu moro. Na frente há um belo jardim e atrás um pomar cheio de árvores, com frutas. Meu pai sai cedo para trabalhar e cuidar para não faltar nada em casa para mim e para meus irmãos. Minha mãe está sempre limpando e arrumando a casa. Não há coisa mais feia que uma casa suja e desarrumada”.
   Eu tentava me encaixar nessa família padrão da época mas não entrava. Pra começar minha casa não era assim. Minha mãe não cuidava nem arrumava porque estava sempre trabalhando fora ou costurando. Quem plantava as flores na frente era eu. O quintal dava gosto porque tinha de tudo, mangueiras, goiabeiras, amoreiras, romãzeiras, laranjeiras, abacateiros enormes, caquizeiros, mamoeiros, limoeiros, jaqueiras e até um pé de maçãs visitado por todos os vizinhos por ser uma raridade. Eu amava tudo aquilo como se ama um paraíso que podia chamar de meu quintal... Nem sei como cabia tanta coisa ali. 
   E meu pai... bem, essa pessoa havia falecido muito precocemente, para tristeza de meus avós, das suas irmãs e da minha mãe. 
   Nós, crianças, não entendíamos nada e ponto. Acabou! Quem mais falava dele para nós era a vó Luíza. Falava de seus gostos, do seu jeito e o lembrava como Finado Arlindo, tanto que achei que o nome dele era esse. E no “Dia de Finado” íamos ao Cemitério levar coroas feitas com flores de papel crepom para ele e a nona Rosa, ou Finada Rosa. Ao longo do ano, as flores iam derretendo e colorindo as pequenas cruzes. Minha mãe só falava que seu finado marido era bonito, elegante e fino e trabalhava numa função importante na Usina Central Paraná, dos Lunardelli, em Porecatu, no início dos anos 1950. 
   Sem nenhum trauma, nem bullying, a gente cresceu com a ausência do pai, mas com sua presença nas conversas e lembranças. A foto grande e em moldura oval colocada na sala, de farda oficial em tons oliva, lembra que servira o Exército. Descobri ainda que era baloneiro por meio de fotos em que ele aparecia soltando balões com colegas do quartel: sabia que frequentou a escola – ia de trem para Ibitirama – e sabia ler e escrever muito bem, luxo para poucos, na época. Pelas cartas que deixou, além de escrever bem tinha uma caligrafia maravilhosa. “Por isso”, dizia minha avó – “ por ter estudo é que conseguiu bom emprego”. Descobri também uma folha com uma poesia copiada por ele, A Flor e a fonte, e me senti feliz porque “puxei pra ele” nesse quesito de poesia. 
   Além das fotos, uma lembrança de meu pai me marcou bastante: havia um paletó pendurado na parede do quarto. Era claro, de linho e com riscas. A gente, mesmo curiosa, não mexia porque minha irmã mais velha havia dito que embaixo havia um monte de baratas . Mas eu ficava a olhar e a imaginar como ele seria, o que estaria fazendo, como seria a nossa vida com a presença de um pai. Mas nada de duradouro porque, para nos manter, tinha minha mãe como referência meu avô, figura masculina forte, sem nunca usar de autoritarismo e minha avó para amar, receber amor e ensinar a amar. Nunca ouvi alguém nos chamar de coitados por sermos órfãos de pai, nem que “Deus levou, quis assim”, porque Deus não o levaria para longe de sua família. Simplesmente éramos uma família sem a presença paterna. 
   Ainda sonhava com uma casa bonita como a do livro, imaginava como seria o sofá que a gente não tinha, o abajur do lado, talvez a luz elétrica, o chuveiro de balde, enquanto nós nos banhávamos numa grande bacia, o que já era muito bom. O grande jardim da lição era bem diferente do nosso, tão cheio de folhagens e flores plantadas em latas, pendendo das paredes. Mas isso era o de menos, não chegava a incomodar porque, além da cerca, havia tantas flores, tanta vida e alegria que era só abrir o portão e partir para a aventura de viver, brincar na rua, voltar suja para casa, encontrar os bolinhos e o café com leite, querer dormir sem tomar banho, brigar com os irmãos e fazer as pazes, ser criança de verdade sem se importar com os problemas dos adultos. Conviver com a presença de tanta gente querida equilibrava com a ausência de outras que também foram amadas, e nos davam a certeza de que a vida é feita assim mesmo. 
   O tempo passou, o paletó foi tirado da parede, e não havia baratas por trás, mas, aos poucos, fomos compreendendo que esse paletó abrigava a história do nosso querido pai, uma história de vida curta, bonita e verdadeira, e que sempre poderemos relembrar com imensa saudade. (FONTE: Crônica escrita por ESTELA MARIA FREDERICO FERREIRA, leitora da FOLHA, página 2, coluna DEDO DE PROSA, FOLHA RURAL, 18 e 19 de novembro de 2017, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente!

Comente!

.

.

.

.

Comentários

Wanda Cobo

"Maravilha meu amigo, continue nos deliciando com suas ideias." W.D Londrina-Pr


Adilson Silva

Olá Professor José Roberto, Parabéns pelas excelentes matérias , muito bom conhecimento para todos. muita paz e fraternidade. Londrina-Pr

Marcos Vitor Piter

Excelentes e Sabias palavras parabéns Professor um Abraço dos Amigos de Arapongas - PR.

João Costa

Meus parabéns por vc e por tudo que pude ler continue levando este conhecimento p/ todos. Forte abraço! João Batista.
--------
Meu amigo continue contribuindo com a sua sabedoria. Forte abraço... João Batista 31/10/2013
Daiane C M Santos
Parabéns, muito criativo e inteligente!
Zeze Baladelli
Oi meu amigo,entrei seu blog,parabéns querido,voce é um gentleman,um grande amigo e muito inteligente,desejo que Deus te abençoe mais e mais...super beijo...



MARINA SIMÕES

Caro amigo Roberto, muito obrigada por suas sábias e verdadeiras palavras. Como é bom encontrarmos no nosso dia adia pessoas que comungam nossas idéias, nossas críticas, ou mesmo comentário sobre determinados assuntos. Eu procuro escrever e mostrar mensagens de
fé, de esperança, ou mesmo um alento carinhoso para nós que vivemos um mundo tão cruel, egoísta e caótico. Estou tentando escrever um comentário sobre seus textos. Parabéns, eu os tenho como que a "arquitetura" com as palavras. É um estilo totalmente seu, e meu amigo é simplesmente estimulante. Ele nos faz pensar e isto é muito bom. Um grande abraço. Marina.



JOÃO RENATO
Aqui estou eu novamente é impossivel não entrar aqui para vê estas maravilha por vc postada. Forte abraço do seu amigo hoje e sempre...........

ADALGISA
Parabéns! meu amigo querido!!!Adorei seu blog, mensagens lindas e suaves como a tua persoalidade e seu jeito de ser!!!Abraços e beijos.
TIAGO ROBERTO FIGUEIREDO
Parabéns professor José Roberto seu blog está divino..abs !
JAIRO FERNANDES
Olá, Querido Professor José Roberto! Fiquei muito emocionado com suas mensagens postadas, gostaria muito de revê-lo novamente após muitos anos, você fora meu professor e tenho muita saudade, gostaria que enviasse-me o seu endereço.ʺ Deus te ilumine sempreʺ Pois fazes parte de minha história de vida.
ALICE MARIA
Oi tio.Muito lindo seu cantinho na internet. Tô de olho. Lembro também de algumas coisas lá da Serra, principalmente da venda do vô Rubens. Beijo ,Alice Maria.

WANDA COBO

WANDA COBO

Postagens populares