domingo, 10 de maio de 2015

A HERANÇA DA IMAGINAÇÃO


          Meu pai lia tudo que encontrava, minha mãe cantava ao som da enceradeira, fantasia nunca faltou àqueles dois.

   No Dia das Mães resolvi falar do pai. É que  na semana que passou me emocionei com um acontecimento. Estava  conversando na rede social com o Gustavo, um dos meus filhos gêmeos, falava com ele sobre Antonin  Artaud, sobre poesia e magia, então falei em glossolatias – uma categoria de escrita de Artaud que rompe com a associação comum do signo e do significado, feito de palavras esquisitas, combinadas pelo seu poder sonoro. Meu filho associou imediatamente o que eu dizia ao “falar em línguas”. Na mosca. Fiquei feliz pelo grau de compreensão que ele tem aos 18 anos. A única herança que faço questão de deixar aos meus filhos é a procura do conhecimento. Uma herança que recebi  do  meu pai para quem não passavam  batidos nem pedaços de jornal, lis tudo que encontrava. Lia em voz alta para a gente, adorava livros.
   A conversa com meu filho mexeu  camadas “geológicas” dentro de mim. Carrego muito de meu pai, que tinha uma biblioteca modesta, só uma estante com portas de vidro, mas que ocupava um espaço importante da casa. Tinha também um baú sempre fechado no qual ele dizia guardar uma máscara de palhaço, o que em vez de causar efeito lúdico nos metia medo, assim nunca mexíamos  nos livros esotéricos guardados naquele baú sem chave, mas nos mantinha à distância pelo mistério. Meu pai era cheio de imaginação. Meu pai era um leitor que também criava histórias. Lia até folhas de jornal nas quais, antigamente, vinham embrulhadas as verduras, antes dos sacos plásticos. Notícias do cotidiano e, sobretudo, da política, eram de seu estrito interesse e ainda que viessem  meio atrasadas, embrulhando pés de alface, meu pai tinha sabedoria para distinguir que isso “não tinha muita importância. Os políticos e os partidos são quase sempre os mesmos”.  Mais de quarenta anos depois percebo que esstva coberto de razão.
    Uma de suas alegrias era trazer para casa a Revista Geográficas, com fotos grandes e coloridas, era assim que a família inteira ia para o Ártico, para a Terra do Fogo , quando não nos perdíamos nos confins da África, no meio das tribos. A edição histórica da revista  Realidade sobre os yanomamis, com as fotos magníficas de Cláudia Andujar, nos anos 1970, foi uma das publicações que mais li na infância e, de tão importante, acabou guardada no baú de livros esotéricos.
   Meu pai ainda lia a Bíblia em voz alta, não como um  desses  fiéis que se julgam profetas. Meu pai lia a Bíblia  pela fé – afinal, era um cristão – mas também pela beleza literária, pelo significado das parábolas, devo a ele minhas primeiras aulas de hermenêuticas. Meu pai não se contentava em nos ensinar a ler, fazia questão que aprendêssemos a interpretar os textos. . Para nossa sorte tinha ainda um pensamento  crítico que nos ajudou a ter opinião. A magia da leitura vinha também pelo seu gosto pelas coisas científicas, pelo viés da corrida espacial em plena Guerra Fria, ele torcia pelos russos e não me esqueço da sua alegria, misturada com apreensão quando os astronautas embarcavam nos foguetes. Muitas vezes rompia com suas tendências políticas e desejava boa sorte também aos americanos . Meu pai era um humanista.
   Da minha mãe, guardo a lembrança da paciência com que ouvia todas essas histórias na convivência  com um homem avançado para seu tempo, que dava mais valor às idéias que ao dinheiro. Até por isso viveu modestamente, mas cheio de sonhos, e gostava  de presentear minha mãe com eletrodomésticos sempre que podia. Mas antes de dar o presente  criava um clima,  uma história. Foi assim que num Dia das Mães a libertou da vassoura e dos escovões dando-lhe uma enceradeira  Arno,  lembro-me bem da marca. Em domingos como este ainda a vejo cantando  enquanto passava a enceradeira pela casa. Minha mãe gostava de cantar e acho que o barulho da enceradeira  foi  também a sua orquestra. Era feliz assim, no baile do cotidiano. Imaginação nunca falou àqueles dois. (Texto escrito por CÉLIA MUSILLI  celiamusilli@terra.com.br  página 4 do caderno FOLHA 2, espaço  CÉLIA MUSILLI, publicção do jornal FOLHA DE LONDRINA, domingo, 10 de maio de 2015).

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente!

Comente!

.

.

.

.

Comentários

Wanda Cobo

"Maravilha meu amigo, continue nos deliciando com suas ideias." W.D Londrina-Pr


Adilson Silva

Olá Professor José Roberto, Parabéns pelas excelentes matérias , muito bom conhecimento para todos. muita paz e fraternidade. Londrina-Pr

Marcos Vitor Piter

Excelentes e Sabias palavras parabéns Professor um Abraço dos Amigos de Arapongas - PR.

João Costa

Meus parabéns por vc e por tudo que pude ler continue levando este conhecimento p/ todos. Forte abraço! João Batista.
--------
Meu amigo continue contribuindo com a sua sabedoria. Forte abraço... João Batista 31/10/2013
Daiane C M Santos
Parabéns, muito criativo e inteligente!
Zeze Baladelli
Oi meu amigo,entrei seu blog,parabéns querido,voce é um gentleman,um grande amigo e muito inteligente,desejo que Deus te abençoe mais e mais...super beijo...



MARINA SIMÕES

Caro amigo Roberto, muito obrigada por suas sábias e verdadeiras palavras. Como é bom encontrarmos no nosso dia adia pessoas que comungam nossas idéias, nossas críticas, ou mesmo comentário sobre determinados assuntos. Eu procuro escrever e mostrar mensagens de
fé, de esperança, ou mesmo um alento carinhoso para nós que vivemos um mundo tão cruel, egoísta e caótico. Estou tentando escrever um comentário sobre seus textos. Parabéns, eu os tenho como que a "arquitetura" com as palavras. É um estilo totalmente seu, e meu amigo é simplesmente estimulante. Ele nos faz pensar e isto é muito bom. Um grande abraço. Marina.



JOÃO RENATO
Aqui estou eu novamente é impossivel não entrar aqui para vê estas maravilha por vc postada. Forte abraço do seu amigo hoje e sempre...........

ADALGISA
Parabéns! meu amigo querido!!!Adorei seu blog, mensagens lindas e suaves como a tua persoalidade e seu jeito de ser!!!Abraços e beijos.
TIAGO ROBERTO FIGUEIREDO
Parabéns professor José Roberto seu blog está divino..abs !
JAIRO FERNANDES
Olá, Querido Professor José Roberto! Fiquei muito emocionado com suas mensagens postadas, gostaria muito de revê-lo novamente após muitos anos, você fora meu professor e tenho muita saudade, gostaria que enviasse-me o seu endereço.ʺ Deus te ilumine sempreʺ Pois fazes parte de minha história de vida.
ALICE MARIA
Oi tio.Muito lindo seu cantinho na internet. Tô de olho. Lembro também de algumas coisas lá da Serra, principalmente da venda do vô Rubens. Beijo ,Alice Maria.

WANDA COBO

WANDA COBO

Postagens populares