sábado, 10 de março de 2018

CRÔNICA DAS CRÔNICAS


   Os escritores garimpam a preciosidade onde está o corriqueiro e quase sempre inauguram minas
   O gato se aproxima quando estou no meio da leitura, folgado, se interpõe entre as páginas e os meus óculos. Instintivamente falo: “Saia, estou estudando”. E só então me dei conta que ler é muitas vezes estudar, sobretudo para quem escreve. 
   Observo a escolha das palavras, as figuras de linguagem que clareiam e obscurecem o texto. Percebo que os autores refinam a língua ou a embrutecem, fazem delas veículo de memórias, usam-na para amarrar realidade e ficção.
   É disso que trata a resenha sobre “Mil rosas roubadas”, livro de Silvano Santiago, analisado pelo escritor e professor de literatura da UERJ Italo Moriconi. O resenhista se ocupa justamente em descobrir onde termina a realidade e começa a ficção, deixando claro que os romances biográficos ocupam-se de unir as pontas do impossível. Poucos autores assumem que sua ficção é trespassada pela realidade. Mas a verdade é que ao enxotar um gato ou despedir-se de um amigo, um novo texto começa. 
   Os cronistas estão sempre procurando assunto, garimpam a preciosidade onde está o corriqueiro e quase sempre inauguram minas. Penso nas brincadeiras de Domingos Pellegrini com os netos e vejo-o como um taxidermista prendendo borboletas num texto para a eternidade. Ali, onde ele fixa a fantasia, fica também a memória, resultando a função das crônicas e das fotografias. 
   Penso que Paulo Briguet muitas vezes se inspira na própria fé para tomar os ares de Santo Agostinho urbano que faz da Avenida Paraná sua praça de reflexão cristã, permeada por “confissões” que, decerto, exigem coragem. Penso no professor Marco Rossi que une as pontas da Sociologia à cidade onde vive e da qual faz seu laboratório de experiências políticas e culturais. Em todos os casos, lá está o homem, seu conhecimento e sua imaginação. 
   A julgar pela resenha, o livro “Mil coisas roubadas” humaniza Salviano Santiago, a quem entrevistei sobre a cultura da América Latina há alguns anos. No livro, resplandece o homem no lugar do estudioso. Moriconi mostra como a amizade do autor com Ezequiel Neves, na Belo Horizonte dos anos 50, funcionou como a aproximação de um acadêmico com um garimpeiro do rock. Duas personalidades distintas, um dedicado à alta cultura e outro dedicado ao pop. Uma amizade improvável e um amor e um amor mais improvável ainda, naquilo que Moriconi chama de “anamese de um histórico sentimental”. 
   Na resenha está implícita a arte de Santiago em ficcionalizar, encenar, figuras numa busca incessante de metáforas que deem conta da vida e, sobretudo, do amigo morto.
   Talvez a arte do escritor esteja no jogo de documentar a realidade com o preenchimento da ficção, porque de subjetividade também é feita a literatura. Diante da morte do amigo Ezequiel Neves, o professor, pesquisador e historiador de carreira bem sucedida, Silviano Santiago, encheu-se de ternura, única condição pura da vida, para traçar a trajetória de dois adolescentes muito diferentes que se encontraram e se completaram nas lacunas. Algumas biografias contêm o esforço da lembrança e o voo do que poderia ter sido e não foi. Quase toda literatura é composta deste vácuo, no qual a invenção substitui a falta. 
   Mas ela também pode nascer da memória das coisas corriqueiras, como quem tropeça na ingerência de um gato e escreve sobre a pequena viagem que nos permite ler um texto como quem estuda e, no ato, recupera o olhar sobre a escrita e seus significados. FONTE: Crônica escrita pela jornalista e escritora CÉLIA MUSILLI, celia.musilli@gmail.com página 2, caderno FOLHA 2, coluna CÉLIA MUSILLI,  3 e 4 de março de 2018, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).

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Comentários

Wanda Cobo

"Maravilha meu amigo, continue nos deliciando com suas ideias." W.D Londrina-Pr


Adilson Silva

Olá Professor José Roberto, Parabéns pelas excelentes matérias , muito bom conhecimento para todos. muita paz e fraternidade. Londrina-Pr

Marcos Vitor Piter

Excelentes e Sabias palavras parabéns Professor um Abraço dos Amigos de Arapongas - PR.

João Costa

Meus parabéns por vc e por tudo que pude ler continue levando este conhecimento p/ todos. Forte abraço! João Batista.
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Meu amigo continue contribuindo com a sua sabedoria. Forte abraço... João Batista 31/10/2013
Daiane C M Santos
Parabéns, muito criativo e inteligente!
Zeze Baladelli
Oi meu amigo,entrei seu blog,parabéns querido,voce é um gentleman,um grande amigo e muito inteligente,desejo que Deus te abençoe mais e mais...super beijo...



MARINA SIMÕES

Caro amigo Roberto, muito obrigada por suas sábias e verdadeiras palavras. Como é bom encontrarmos no nosso dia adia pessoas que comungam nossas idéias, nossas críticas, ou mesmo comentário sobre determinados assuntos. Eu procuro escrever e mostrar mensagens de
fé, de esperança, ou mesmo um alento carinhoso para nós que vivemos um mundo tão cruel, egoísta e caótico. Estou tentando escrever um comentário sobre seus textos. Parabéns, eu os tenho como que a "arquitetura" com as palavras. É um estilo totalmente seu, e meu amigo é simplesmente estimulante. Ele nos faz pensar e isto é muito bom. Um grande abraço. Marina.



JOÃO RENATO
Aqui estou eu novamente é impossivel não entrar aqui para vê estas maravilha por vc postada. Forte abraço do seu amigo hoje e sempre...........

ADALGISA
Parabéns! meu amigo querido!!!Adorei seu blog, mensagens lindas e suaves como a tua persoalidade e seu jeito de ser!!!Abraços e beijos.
TIAGO ROBERTO FIGUEIREDO
Parabéns professor José Roberto seu blog está divino..abs !
JAIRO FERNANDES
Olá, Querido Professor José Roberto! Fiquei muito emocionado com suas mensagens postadas, gostaria muito de revê-lo novamente após muitos anos, você fora meu professor e tenho muita saudade, gostaria que enviasse-me o seu endereço.ʺ Deus te ilumine sempreʺ Pois fazes parte de minha história de vida.
ALICE MARIA
Oi tio.Muito lindo seu cantinho na internet. Tô de olho. Lembro também de algumas coisas lá da Serra, principalmente da venda do vô Rubens. Beijo ,Alice Maria.

WANDA COBO

WANDA COBO

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