O ex-frade Fernando de Gois. Ativista social dos mais respeitados, prova
a vida nas ruas de São Paulo. É escrevinhador da Praça do Patriarca, ativista
no Brás, um profeta na Luz.
“Agora sou um maloqueiro”,
brinca o educador Fernando de Góis, 57 anos, sobre sua nova condição. Desde
fevereiro, ele mora numa “maloca” – termo usado pela população de rua para
definir um grupo que vive numa determinada quadra, uma espécie de condomínio
sem teto munido de marquise. A turma do Fernando é formada por 80 miseráveis e
se abriga perto de um estacionamento na Rua São Bento, Praça do Patriarca,
Centro Velho de São Paulo. Seu banheiro – a estação de metrô que dá nome à via.
Comparado a outros, é lugar bom, limpo e seguro. Não sai barato.
Para garantir pouso na maloca de São Bento, Góis teve de ganhar a confiança do dono da circunscrição, morador de um prédio abandonado, sujeito dado a distribuir catiripapos nos aventureiros que se assanham no território alheio. “Tive medo. Quando cheguei, encontrei gente machucada mulheres chorando”, admite o criador da Chácara dos Meninos de 4 Pinheiros, ativista social dos mais respeitados, sobre as regras de convivência em seu novo endereço, o relento. Não faltou quem tentasse convencê-lo a sossegar a ideia. Em vão.
Góis nutre atração pela rua desde os tempos de frade carmelita, na década de 1980, quando largou o convento para viver numa favela da Vila Lindoia, em Curitiba. Pencas de religiosos à época fizeram o mesmo, inspirados pela Teologia da Libertação. A intenção de Fernando, contudo, era radicalizar. Sua opção pelos pobres incluía dormir no sereno – chegou a flertar com a Praça Rui Barbosa. O plano durou até ser tragado pelo projeto da Chácara de Mandirituba, na região Metropolitana de Curitiba, a partir de 1992. Foram 22 anos de serviço prestados, tempo em que acolheu 800 crianças e adolescentes vítimas do abandono, da violência e do abuso. Não tinha quarto. Não tinha folga. Difícil quem entenda, mas a rua, agora, é seu sabático.
Para garantir pouso na maloca de São Bento, Góis teve de ganhar a confiança do dono da circunscrição, morador de um prédio abandonado, sujeito dado a distribuir catiripapos nos aventureiros que se assanham no território alheio. “Tive medo. Quando cheguei, encontrei gente machucada mulheres chorando”, admite o criador da Chácara dos Meninos de 4 Pinheiros, ativista social dos mais respeitados, sobre as regras de convivência em seu novo endereço, o relento. Não faltou quem tentasse convencê-lo a sossegar a ideia. Em vão.
Góis nutre atração pela rua desde os tempos de frade carmelita, na década de 1980, quando largou o convento para viver numa favela da Vila Lindoia, em Curitiba. Pencas de religiosos à época fizeram o mesmo, inspirados pela Teologia da Libertação. A intenção de Fernando, contudo, era radicalizar. Sua opção pelos pobres incluía dormir no sereno – chegou a flertar com a Praça Rui Barbosa. O plano durou até ser tragado pelo projeto da Chácara de Mandirituba, na região Metropolitana de Curitiba, a partir de 1992. Foram 22 anos de serviço prestados, tempo em que acolheu 800 crianças e adolescentes vítimas do abandono, da violência e do abuso. Não tinha quarto. Não tinha folga. Difícil quem entenda, mas a rua, agora, é seu sabático.
TÍQUETES
Nas imediações da Sé, não esconde a que veio – está ali para provar
na carne o que o povo da rua sente. É experiência mística, à moda de Charles de
Foucauld, o mendicante irmãozinho de Jesus, mas também ação política. Já bateu
na porta do Ministério Público de São Paulo para tratar da truculência de
alguns agentes públicos. E das filas que duram quatro horas. Sua fala diverte:
acha as filas grandes o bastante para
consumir um dia inteiro, entre tíquetes para pegar toalha, tíquetes para banho,
tíquetes para um prato de comida. A burocracia é tamanha que desistiu de dormir
em albergues: calculou que gastaria o mesmo tempo para atravessar o Mar
Vermelho e o deserto do Sinai. Outros moradores devem achar o mesmo – e permanecem
onde estão.
AFETO COMO ESTRATÉGIA
Em quase nove meses de rua,
Góis se tornou uma notícia fresca para a pá de movimentos sociais e igrejas que
atendem os deserdados do Centro paulistano, algo como mil pessoas. “Descer” até
a Cracolândia não estava nos planos. Ao chegar à Sé, dois moradores de rua, Luís
Ricardo e Franciso – o acolheram na Rua
Boa Vista, por uma semana, com uma condição: que se alistasse como voluntário no
projeto Restaura-me, da congregação dos missionários xaverianos, no bairro do
Brás. Gostou do que encontrou e passou a desenvolver ali a “Pedagogia dos
Sonhos”, dinâmica criada para os meninos de 4 pinheiros. Vai a pé, duas, três
vezes por semana, e ali constrói um ninho, à revelia da decisão de que não iria
se vincular a um único movimento. Quem sabe em visita ao bairro da Luz, onde
grassa o crack, encontrasse um ponto de fuga. Foi sozinho. Desabou. Agora,
parte dos dias da semana é passada na Cracolândia, onde Fernando de Góis se fez
aprendiz. Sua única estratégia é sorrir, abraçar e beijar as pessoas – é o que
se pode fazer.
Logo no primeiro abraço que deu ouviu um solene não. Deu o abraço mesmo assim, a contragosto do freguês. A cena se repete com outros moradores da região, beneficiados pelos abraços de Góis. “Na Cracolândia, até os cachorros são tristes”, diz, sobre o local que desafia as lógicas.
Logo no primeiro abraço que deu ouviu um solene não. Deu o abraço mesmo assim, a contragosto do freguês. A cena se repete com outros moradores da região, beneficiados pelos abraços de Góis. “Na Cracolândia, até os cachorros são tristes”, diz, sobre o local que desafia as lógicas.
Registros
Histórias irão para livro
O inquilinato na maloca tem lhe servido de escola. Diz: “Você sabe que
os moradores de rua só falam a verdade depois da meia-noite?” Ouviu isso de uma freira, acatou. Quando a
cidade esvazia e não há mais razão de encenar dramas, para conseguir comidas e
favores, os sem teto se dão a conhecer. Gostam de contar suas histórias – Fernando
registrou até agora 30 delas, que pretende publicar num livro. Chega a formar
uma fila, não para pegar a toalha, mas
para se sentar ao lado do escrevinhador e lhe dizer o passado. Cansa. As
sessões costumam varar a madrugada, “mas enquanto tiver forças, vou continuar
ouvindo. Ouvir é o que tenho de fazer”,
resume o cidadão que depois da “Pedagogia dos Sonhos”, desenvolve a “Pedagogia
dos Ouvidos” e a “Pedagogia dos abraços”. ( JOSÉ
CARLOS FERNANDES/GAZETA DO POVO, página 10, geral, PERFIL, terça-feira 27
de outubro de 2015, publicação do JORNAL DE LONDRINA).
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