Viajei de Campinas a Londrina num avião
pilotado por uma mulher. Nunca havia viajado com uma comandante. Na decolagem, a voz feminina
falando da previsão de chegada e das condições do tempo me deu a sensação de
segurança. Não só da minha em função daquela voz quase maternal, mas da
segurança dela, muito calma naquele céu azul.
Acredito que um dos prazeres dos
pilotos seja estar em contato com o céu, ter como local de trabalho o espaço,
dividindo a mente entre os equipamentos da cabine e a liberdade de voar com
asas metálicas.
Vim para Londrina falar sobre a escritora
mineira Maura Lopes Cançado na programação do Festival Literário Londrix. Achei tremenda
coincidência uma mulher pilotar o avião, porque Maura na juventude, ali pelos
14, 15 anos, quis tirar brevê e chegou a ganhar da mãe um avião Paulistinha.
Ela era arrojada, as mulheres que pilotam aeronaves são arrojadas e achei essa
coincidência na minha viagem uma espécie um recado da escritora, como se dissesse:
“Vamos voar, Célia”. E voei mesmo, sobretudo
no pensamento.
Num passado não muito remoto, algumas
brasileiras aventuraram-se pelos ares pela primeira vez. Uma delas foi a
paulista Joana Castilho D’Alessandro que, no início da década de 1940, tirou
brevê aos 14 anos, quando realizou o primeiro voo solo, aos 15 ganhou um
campeonato de acrobacias e foi parar no Guiness Book, Ela recebeu o brevê do
então presidente Getúlio Vargas, pura demagogia, o governo jamais lhe ajudou
nas despesas do curso que foi pago pelo pai. A aviadora transformou-se num
fenômenos da mídia, seu nome transformou-se em marca de refrigerante: o Guaraná Joaninha.
Na época, Assis Chateubriand, dono dos Diários Associados, encarregou-se de
farta publicidade em torno do seu nome. Não era para menos, uma mulher aviadora
nos anos 40 chamava muito a atenção, chamam até hoje. Antes de Joana, duas outras
mulheres já haviam feito história na aviação brasileira: Thereza de Marzo e
Anézia Pinheiro Machado começaram a voar nos anos 20 e há uma dúvida histórica
sobre quem tirou primeiro o brevê. Thereza acabou se casando com seu instrutor
de voo, o alemão Fritz Roesler que depois lhe cortou as asinhas: achava demais
ter dois pilotos na família. Os tempos eram de machismo explícito.
Anézia Pinheiro Machado realizou a
façanha de fazer voos mais longos, primeiro de São Paulo ao Rio de Janeiro e
depois cruzou as Américas, tendo voado de Nova York ao Rio num monomotor.
Sinceramente? Tenho um calafrio só de pensar nas condições do avião e dos
equipamentos da época, bem mais precários que hoje.
No meu voo de Campinas Londrina, para trazer a obra de Maura Lopes
Cançado ao festival, pensei em fragmentos dessas histórias. Como Maura também
foi aviadora e inspirou uma personagem do romance “Bela Para Voar”, de Pedro
Rogério Moreira, foi impossível não ligar as coincidências de termos embarcado num
avião pilotado por uma mulher. Digo “termos embarcado”, assim no plural, porque
tenho a impresso de que voei com Maura, se não numa aeronave, em sua
literatura. Foram mais de três anos viajando em seus livros, debruçada sobre
minúcias, detalhes, hábitos, contradições, denúncias sobre o sistema manicomial
, fantasia sobre seus amores. E a aventura ainda não terminou.
Conhecer uma autora tão intimamente é
um voo. Agora, sempre que podemos, viajamos pelo Brasil pra contar sua
história. Para mim, isso é mais importante do que contar que estive em Londres,
Paris ou Bruxelas. Há voos que são únicos, podem ser muito duradouros e, às
vezes, nunca mais se repetem. ( celiamusilli@terra.com.br página 4, FOLHA 2 , espaço CÉLIA MUSILLI,
publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA, domingo, 13 de setembro de 2015).
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