Os personagens dos filmes estão entre nós, não à toa, cineastas capturam os tipos redimensionando suas qualidades, defeitos e, sobretudo, suas neuroses. Marca registrada de diretores como Pedro Almodóvar, os tiques nervosos e as personalidades excêntricas moram bem aqui ao lado e muitos podem nos olhar da mesma forma. Já me disseram que na minha concentração no trabalho às vezes ”estou ouvindo”, em outros tempos isso já rendeu muitas brincadeiras dos colegas que diziam: “elas concordou, olha lá as sobrancelhas.” Nunca fiz uma selfie brincando com minhas expressões ou manias, tampouco saio por aí fotografando pessoas que considero interessantes ou chamam minha atenção. Mas sou observadora e fotografo com os olhos as mil expressões que encontro e iluminam o dia por mera atenção ao que se passa.
Os corredores de uma galeria no centro da cidade me lembram um teatro “de passagem” como o Oficina, no bairro do Birigui, em São Paulo, templo do talentoso Zé Celso Martinez Correa, que há décadas briga na justiça com Silvio Santos para manter a arquitetura ao redor de seu espaço cultural, ameaçado pelo dono do Baú da Felicidade que quer construir bem ao lado algumas torres residenciais.
A galeria tem também um espaço amplo de ponta a ponta e, quando me sento ali, observo tipos que poderiam estar no cinema ou no teatro, mas estão nas ruas debaixo de nossos olhos.
Um marido passa carregando uma cafeteira ainda na caixa, passa sério como se carregasse o andor de um santo, logo atrás vem a mulher, de passo firme e corpo alinhado da cabeça aos pés, seus braços, tronco e pernas lembram um bloco sólido, nada está fora do lugar, tudo proporcional e harmonioso, não fossem os olhinhos miúdos piscando de forma intermitente e mais rápida que um vaga-lume. Dona Certinha poderia ser personagem de filmes, só o pisca-pisca dos olhos valeria umas três cenas que dariam personalidade a uma personagem levemente neurótica. Gestos e expressões repetidas refletem no corpo nossas pequenas travas e manias. Nunca saberei se aquela mulher usa lentes de contato ou reproduz, como muitas crianças, a atitude de piscar por puro nervosismo.
Atrás do casal vem um setentão em um suéter quadriculado, tipo jacguard. Desde os anos 60 não via uma blusa daquele tipo, que meus tios vestiam quando queriam imitar Marcelo Mastroiani. Um deles ficou tão bem no modelo que ganhou o apelido de Clark Gable, por conta também dos olhos verdes que enchiam uma tela de cinema, num daqueles filmes de arrasas os corações. Os jeans e camisetas roubaram dos homens a vaidade de usar um suéter (assim se chama esse tipo de agasalho) que combina com calças lisas puxando pela mesma cor. O Mastroiani da galeria não chega a ser muito convincente como um suposto astro de cinema em tecnicolor, mas todo esforço pela elegância tem valor nestes tempos de chinelões e bermudas que ameaçam escorregar mostrando os fundos que não gostaríamos de encarar nem de frente.
Mas se fosse escolher a cena da semana, ficaria com o PM encostado no muro de uma igreja no centro da cidade. Eram cerca de 21 horas quando o vi com a farda de praxe, os coturnos engraxados e o revólver na cinta. Na rua, nenhum sinal de bandidagem, nenhum movimento que pudéssemos interpretar como suspeito. Tudo calmo no lugar onde habitualmente os moradores de rua dão show de variedades brigando por cigarro ou cobertor.
Na noite chuvosa, o PM encostado ao muro fala ao celular e, de passagem, ouço sem querer um trecho da conversa: “Quando chegar em casa, te ligo, meu amor.” Com apenas uma frase o soldado demonstrou toda sua humanidade, sem agressividade e desarmado na vigília, deixou claro que debaixo da farda também bate um coração. A cena romântica ficaria impecável sob a direção de Vittorio DE Sica, tão simples quanto emocionante. (Crônica escrita por CÉLIA MUSILLI, celia,musilli@gmail.com página 2, coluna CÉLIA MUSILLI, 11 e 12 de novembro de 2017, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).
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