Ainda há muito a se dizer sobre as obras de Carolina de Jesus e Maura
Lopes Cançado
Duas escritoras brasileiras que tiveram seu
apogeu nos anos 60, despertam cada vez
mais a atenção dos pesquisadores por apresentarem uma obra instigante. Neste
âmbito, talvez Carolina de Jesus seja
mais conhecida do que Maura Lopes Cançado. Carolina é autora de “Quarto de
despejo- diário de uma favelada”, lançado em 1960 depois que o jornalista
Audálio Dantas descobriu sua obra em 1958 ao fazer uma reportagem para a
revista O Cruzeiro, na favela Canindé, em São Paulo. Ela tinha muitos cadernos
com poesia, romance, anotações variadas, mas o jornalista interessou-se mesmo
pelo seu diário, que contava a vivência de uma mãe solteira, que sobrevivia
catando papel de dia, enquanto escrevia à noite. A primeira edição do livro
vendeu 10 mil exemplares só na primeira semana após seu lançamento , depois foi
traduzido em vários países do mundo. Hoje, parte do material deixado por
Carolina encontra-se microfilmado e faz parte dos acervos de vários centros de
documentação do Brasil e do mundo, conforme relato da pesquisadora Elena Pajera
Peres, pós-doutoranda do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, em vídeo
realizado pela Fabesp. Ela é uma pesquisadora que se ocupou da obra de Carolina
apontando não só seu valor literário, mas seu valor histórico, sociológico e
antropológico, entre outras coisas.
Assim como Carolina de Jesus, Maura
Lopes Cançado é mineira, mas viveu no Rio, onde escreveu o diário “Hospício é
Deus” que tive oportunidade de analisar na dissertação do mestrado. Entre as
duas autoras, há pontos em comum, talvez o mais significativo seja o fato de darem
testemunhos importantes sobre ambientes marginalizados, como a favela e os hospícios,
onde Maura passou praticamente a vida toda internada, era considerada
esquizofrênica
Personagens de grandes cidades
brasileiras – Carolina em São Paulo e Mauro no Rio – ambas foram contemporâneas
e sofreram das mesmas agruras por serem mulheres marginalizadas: uma favelada,
a outra louca, mas o que se levanta acima dessa condição é um olhar sobre
realidades das quais saberíamos menos se
não fosse esse tipo de literatura testemunhal.
“Quarto de Despejo” compara a favela a
um depósito de gente pobre. Não muito diferente dos hospícios que, na época de
Maura, eram tomados como depósito de desvalidos: de alcoólatras a prostitutas,
chegando ao absurdo, em alguns casos, de comportarem todo tipo de gente
negligenciada socialmente, sendo em
menor número propriamente os loucos.
Retratos sociais da desigualdade – que
ainda permanece como condição existencial de muitos brasileiros – os livros
dessas duas autoras fornecem uma visão que nem todos alcançariam, não fosse o
papel de registro da literatura confidencial que, por acaso, chegou à
publicação, enquanto muitos outros livros da mesma natureza são completamente
desconhecidos,
A pesquisadora Raffaella Fernandez, da
Unicamp, também trabalha com material inédito de Carolina de Jesus, cerca de 50
cadernos, somando aproximadamente 5 mil páginas, entre as quais há sete
romances. Obra monumental de quem “não tinha alma de favelada, mas nasceu para
brilhar”, segundo Audálio Dantas.
De Maura Lopes Cançado, é mais
conhecido o diário “Hospício é Deus”, já o livro de contos “O Sofredor do Ver”teve
a primeira edição de 1968 esgotada há duas décadas, até ganhar nova publicação
da Confraria dos Bibliófilos do Brasil
em 2013, mas trata-se também da edição já esgotada. Produzida em formato
artesanal, ilustrada e com exemplares numerados
, foi essa edição que analisei na minha dissertação do mestrado concluída na
Unicamp em 2014, e que hoje se encontra cotada a peso de ouro como raridade em
poucos sebos do Brasil. De lá para cá, há rumores de que seus dois livros serão
republicados ainda este ano, coisa a se conferir. Há tempos existe um interesse profundo
por sua obra, mas nada de concreto em relação à reedição de seus livros
escritos, como os de Carolina, como literatura em carne viva. Que os planos
saiam do papel, ou melhor, encontrem a sua forma. ( Texto de celiamusilli@terra.com.br página
4 FOLHA 2, espaço CÉLIA
MUSILLI, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA, domingo, 28 de junho de 2015),
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