Clarice Lispector completaria 97 anos neste 10 de dezembro. Se não foi longeva na vida, sua obra é eterna. Passados 40 anos de sua morte, em 1977, no meu ponto de vista, nenhuma outra autora brasileira alcançou uma tal sofisticação na linguagem, a exemplo de obras monumentais como: “Perto do Coração Selvagem”, “A Paixão Segundo G.H.” ou “Água Viva”, relato intimista que está entre meus livros preferidos.
Clarice, a mulher “com a flor no peito” (em Latim lis), tinha “olhos de piscina”, conforme alusão do poeta Mário Quintana, aproveitada por Rubem Braga numa crônica.
Não só li a maior parte de seus livros, como obras sobre sua vida e literatura: “Clarice, uma vida que se conta”, de Nádia Gotlib (Ática, 1995), “Clarice, uma biografia” (Cosac Naify), escrita por Benjamim Moser, com tradução de José Geraldo Couto e “Cadernos de Literatura Brasileira 17/18” (Instituto Moreira Salles) que trazem, entre outras coisas, depoimentos de jornalistas e escritores que trabalharam com ela no Jornal do Brasil, como Alberto Dines e Ferreira Gullar. Quando escolhi o tema da dissertação do mestrado, não optei por Clarice, apesar de alguma intimidade com a sua obra. Escolhi uma autora relativamente desconhecida, Maura Lopes Cançado que, soube depois, Clarice admirava como contista, elas foram contemporâneas na redação do JB, nos anos 60, apesar de não terem se conhecido pessoalmente.
No livro de Aparecida Maria Nunes – “Clarice na Cabeceira: Jornalismo” (Rocco) soube como ela se comportava nas redações, como se esforçava, em certa medida, para aprender as técnicas dos textos para a imprensa. Dona de estilo literário muito próprio, nos jornais não podia incursionar pela metafísica ou, em linguagem simples, não podia “viajar” com a irrestrita liberdade que tinha nos livros. Também não podia ser existencialista na imprensa, território de objetividade por excelência.
Apesar disso, Clarice tinha um modo peculiar de entrevistar pessoas, como fez com o cronista Carlinhos de Oliveira, a quem encontrou no restaurante Antonio’s , no Rio, trocando com ele bilhetes. Ficaram ali mudos, enquanto se desenrolava a “entrevista” e imagino a atmosfera de cumplicidade que resultou, dizem, numa ótima conversa. Lembrei-me também de um relato sobre seu encontro com Hilda Hilst, quando ficaram completamente silenciosas durante mais de uma hora, olhando uma para a outra. Duas autoras esplêndidas, duas fumantes inveteradas, duas mulheres sagradas.
Continuo atenta às coisas que escrevem sobre elas. Hilda Hilst, inclusive, será a autora homenageada na Flip 2018. Posso dizer dela e Clarice que eram mulheres esfinge que a gente olha por vários ângulos, vários gêneros: romance, poesia, texto jornalístico e um dia descobre, pela profusão de títulos que não param de ser publicados, que ainda há muito a ser dito. Coisas que os pesquisadores investigam de frente , de costas, de lado. Fotografias multifocais, enquanto as esfinges ainda deixam pergunta sem resposta.
Nascida na Ucrânia, Clarice compreendeu como ninguém o Brasil, sua vida urbana, especialmente o Rio, onde são ambientados vários de seus contos. Dentro de ônibus ou no Jardim Botânico, ela é sempre testemunha da vida, refletindo em seus personagens o que lhe ia por dentro. Inesquecível seu conto “Mineirinho”, pseudônimo de um bandido a quem ela tratou com enorme humanidade apesar de seus crimes, porque julgou que a polícia não precisava lhe dar 13 tiros no momento da execução, tendo em vista que o homem já estava morto e os disparos a mais traduziam, mais que tudo, a raiva, não a justiça. O humanismo de Clarice era de alguém que pulsava além dos fatos, indo buscar nas coisas o coração que, como a flor de seu nome, permaneceu aberta permanentemente no peito. Neste 10 de dezembro, fica a homenagem a “Lis pector”, uma flor de voz rouca, língua presa, sotaque estrangeiro e linguagem cósmica. (FONTE: Crônica escrita pela jornalista e escritora CÉLIA MUSILLI, celia.musilli@gmail.com página 2. Caderno FOLHA 2, coluna CÉLIA MUSILLI, 9 e 10 de dezembro de 2017, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).
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