Pela primeira vez em muitas décadas, Londrina tem uma exposição de artes publicadas com classificação indicativa de idade, recomendada a partir de 13 anos. Trata-se da 32ª Mostra Afro Brasileira Zumbi dos Palmares, sob coordenação de Vagner Nogueira e Ângela Maria Sousa, entre outros, que segue até 8 de janeiro na Biblioteca Pública, transferindo-se depois para espaços culturais de outras regiões da cidade.
A novidade chamou minha atenção e a de apreciadores de arte de Londrina porque corrobora com episódios recentes de triste memória, em que apresentações culturais, em todo oo pais, sofreram o boicote d grupos políticos que têm assombrado aquilo que se reconhece como liberdade de expressão, determinando rumos ao que nunca se cogitou como proibitivo ou “não recomendado.
Acostumada a ver exposições, fico entristecida e preocupada com medidas do âmbito da cultura local que vêm cedendo ao receio provocado pelos escândalos encomendados que têm cercado a arte. Sei discernir censura de classificação indicativa por idade, mas parece-me excessivo recomendar que pessoas com menos de 14 anos não vejam obras esplêndidas com as de Paulo Menten, intrinsecamente ligado à história da arte local e nacional, ou Frutuoso, artista considerado vanguarda desde os anos 70. Indicações por idade existem e partem dos próprios grupos artísticos, inverter essa ordem criando uma contramão com o que queria “recomendado” por instituições públicas é temerário. Afinal, quem recomenda, nesse caso, e quais são os critérios de julgamento?
Acho estranho que não se recomende que crianças e jovens possam ter referências do que Paulo Menten e Frutuoso representam na cultura de Londrina.
Fiquei mais entristecida ao saber que existe no momento uma orientação para que todos os equipamentos culturais públicos da cidade passem a ter classificação indicativa por idade, numa atitude que não consolida o enfrentamento de questões contemporâneas, mas consagra o medo.
Já disse mais de uma vez que o nu nem sempre é erótico. Vejo mesmo como falta de cultura associar o corpo ao erotismo, quando há o nu cultural, tribal, artístico ou de protesto. Uma ladainha que repito e à qual pouca gente presta atenção, na contramão da educação artística que deveria ser parte das políticas culturais, oferecendo aos jovens e crianças uma visão integral do corpo associado ou não ao sexo.
O que me preocupa é que ninguém tenha observado na classificação indicativa por idade o quanto a mostra Zumbi deste ano é marcada pela espiritualidade. Para começar, uma escultura em acrílico de Nossa Senhora Aparecida, de Heraldo Duarte, provocou minha emoção remetendo à diversidade que mistura cultura europeia e africana desde as nossas raízes.
Vi ainda a série “Conexão Espiritual” de Marcos de Oliveira; a pintura “Mensageira da Paz” de Tansi Telles; a impressionante “Dananã” de Jorge Soliano Fernandes; as gravuras de Dolores Branco, entre as quais se destaca São Miguel Arcanjo; as pinturas sobre papel de Agenor Evangelista, que também integra a curadoria. Percebi o sincretismo que marca toda cultura nacional e que implode a história dos brancos perpassada pela arte, a cultura e a sensibilidade dos negros, sem os quais seríamos arremedos da Europa. Tivemos no Brasil o choque necessário para contemplar e criar sob o signo da diversidade que enche nossos olhos de propostas que reinventam, inclusive, as artes plásticas.
Se a intenção é “preservar” os jovens das grandes obras de Paulo Menten – que estão no centro da Mostra como um altar mitológico no qual o corpo da mulher é apresentado como objeto de opressão que deve ser refutada – acredito que os zelos proibitivos ou “indicativos de idade” como concessão à censura, funcionam como um mecanismo que vai contra a educação dos sentidos que devem ser treinados para a percepção integral da arte. Deposito justamente nos jovens, não nos “velhos” da cultura, a esperança de que a nudez humana seja cada vez mais merecedora de respeito, para além da associação que se faz do corpo feminino com a pornografia. Que a Nossa Senhora de Heraldo Duarte – que também podemos chamar de Mãe Oxum naquela exposição – nos remeta ao feminino sagrado, no lugar do ensino de censura que avilta e reduz o corpo à carne sem espiritualidade e sem arte, numa visão francamente tosca eu tem alimentado algumas decisões inéditas. (FONTE: Crônica escrita por CÉLIA MUSILLI, jornalista e escritora, celia.musilli@gmail.com página 2, caderno FOLHA 2, coluna CÉLIA MUSILLI, 2 e 3 de dezembro de 2017, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).
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