Um dia aconteceu o milagre: a ipomoea soltou uma flor azul, delicadíssima tarefa de parir a beleza sem perfume
Sei que as pessoas nos escolhem, assim como as escolhemos.Projetos em comum, o mesmo olhar sobre o mundo, nos aproximam por afinidades. Sei que os animais nos escolhem, assim como os escolhemos. Quem explica o cão que nos segue na rua pedindo casa? Quem explica o amor súbito pelo gatinho mais fraco da ninhada?
O que eu nunca tinha percebido é que as plantas também nos escolhem Ou seria a natureza promovendo um acaso que se transforma em amor?
Na última semana, vi nascer na minha sala mais uma ipomoea. O nome é grego, como me disseram, mas como não sou poliglota, me apaixonei por suas pétalas e mergulhei no azul até certo ponto incomum nas flores. A ipomoea chegou ao meu apartamento de forma misteriosa. Nunca a plantei. Nunca deixei na terra nenhuma de suas sementes. Subitamente ela apareceu num vaso no banheiro e cresceu procurando agarrar-se aos azulejos, tarefa inútil pela textura das paredes. Ali nunca deu flor, mas gostei de suas folhas em forma de coração. Um coração de clorofila, com pequenos veios, apegando-se aos azulejos para cair em seguida. Gostei demais de sua persistência.
Pensando em criar uma cortina viva, que barra o sol que diuturnamente castiga a sala, plantei a ipomea num vaso maior , reguei-a e, com a ajuda do meu filho, criei um suporte para que ela crescesse, no início, um simples galho escolhido na rua. A ipomea agradecida tomou para si o suporte e só então entendi por que, popularmente, ela é chamada “corda de viola”. Estica-se como o aço de um instrumento que quer vibrar, enrosca-se no apoio, cresce vertiginosamente a ponto de uma amiga medrosa ter me alertado que a invasora “poderia tomar o apartamento”. Pensei naquele filme de plantas assassinas, mas apenas a vi crescer em perfeita harmonia, soltando galhos delicados e folhas verdinhas.
Num dia de primavera aconteceu o milagre: a ipomoea soltou uma flor azul , delicadíssima tarefa de parir a beleza sem perfume. Porque minha planta não é cheirosa, mas sua beleza encanta até sereias. Fotografei-a por diversos ângulos, queria registrar a primavera em plena sala e meu projeto de cortina viva florescendo. A ipomoea não está sozinha, mais dois vasos de flores pendentes formam conjunto no novo suporte que eu mesma projetei e encomendei a um auxiliar habilidoso. Agora a planta tem mais apoio e sobe pela parede a uma distância de 20 centímetros para que não crie mofo, no domínio perfeito das alturas, como uma trapezista que sabe para onde atirar seus galhos.
Suas flores que abrem de manhã para morrer à noite, me fazem pensar no encanto da impermanência, porque as flores, como os amores, têm prazo, e nisso consiste seu encantamento.
A ipomoea, cuja espécie se estende para cerca de 700 variedades, já considerada uma planta mágica pelos astecas e utilizada no México pelo poder alucinógeno de suas sementes. Mas eu só vejo a sua beleza definida através de outro nome popular como “Glória da Manhã”, como é conhecida na Califórnia, onde a chamam “Glory Morning”.
Assim, nas manhãs em que ela aparece, para depois morrer em tempo breve, refaço a poesia para encontrar sua glória e mergulhar no azul dos amores espontâneos. (FONTE: Crônica escrita pela jornalista e escritora CÉLIA MUSILLI, celia.musilli@gmail.com página 2, caderno FOLHA 2, coluna CÉLIA MUSILLI, 25 e 26 de novembro de 2017, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).
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