Em filme, Chico Buarque diz que hoje o Brasil tem uma cara mais
autêntica
O filme é um documentário em formato clássico, feito não a partir de um roteiro, segundo o diretor, mas das entrevistas que foram feitas antes para serem costuradas depois. Uma inversão do processo, um encadeamento a partir da edição pontuada ainda por músicas de Chico que se casam com as situações que ele vai comentando.
O filme aborda o exílio de Chico, em 1966, quando se viu obrigado a ser artista profissional e, para sobreviver, armou um show na Itália com ninguém menos que Josephine Bakerjá em fim de carreira. O show foi um fracasso, ninguém se entusiasmava, nem se mexia na plateia, daí nasceu a ideia que Chico fica pouco à vontade com o público, pudera.
Acontece que diante das câmeras Chico não tem nada de tímido, é muito solto, ri o tempo todo dos próprios traumas, fala gostosamente de suas ligações com outros grandes compositores como Vinícius, Toquinho e Tom Jobim. Mas fui ao cinema atenta à escorregada fatal que foi apontada na rede social pelo escritor Marcel Mirisola, a afirmação de Chico que o Brasil da bossa nova não era o Brasil de verdade, que aquilo não correspondia à realidade do país e que agora sim, o Brasil teria uma cara mais autêntica. Puxam diante disso meu orgulho nacional desmoronou, porque se a cara do Brasil é a cultura de rodeios que temos hoje, com o funk e o sertanejo assolando nossos ouvidos, o Pís retrocedeu e resta pedir socoro, além de exílio na Escandinávia.
Não quero debitar só à política nossa configuração atual de breguice exacerbada, creio mesmo que ainda se faz boa música no Brasil, embora a mídia não divulgue.
Surpreendi-me quando fui convidada para ser jurada no festval de música de Cruzília (MG) há pouco meses e, para meu alívio, não ouvi um único funk, nenhum sertanejo universitário. Pensei que o Brasil tem jeito.
Então há um equívoco, Chico, se sua afirmação de autenticidade se refere a esse Brasil que escolheu o rodeio como diversão principal, om duplas berrando mais que os bois e as botas marcando um compasso que soa como ofensa. Sinto muito, mas esse é o Brasil midiático do qual não me orgulho, acho mesmo que é produto de uma cultura de segunda linha que dispensou fontes mais refinadas como sua própria criação que nunca cedeu `à facilidade nem a massificação.
A frase não chega a comprometer o filme, repletode boas músicas e tiradas de artista inteligente. Mas foi um escorregão tendo em vista a coincidência entre o Brasil culturalmente grotesco e a fase política em que a música popular também perdeu o controle para a falta de ética, a ponto das letras e os ritmos monótonos provocarem mais preconceito que abertura. Ou não será incitar o preconceito tratar a mulher como “cachorra”? Por favor, Chico, pense melhor e nos redima dessa cultura de machistas e de caubóis. Isso foi o que você sempre fez de melhor pelo Brasil. Nos redima do choque político e cultural que a gente sente quando sai do cinema pois “a coisa aqui tá preta”, é preciso “muita careta pra engolir a transação” e, no fundo, “ninguém segura mais esse rojão”. ( celia.musilli@gmai.com página 4, FOLHA 2, espaço CÉLIA MUSILLI, domingo, 6 de dezembro de 2015, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).
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