Um samurai voltou à FOLHA no último fim de semana, veio com a espada em punho, com a navalha cortante de suas palavras reverberando em nossos ouvidos. Sua última visita, com suas próprias palavras, tinha acontecido em 1939, ano de sua morte, o mesmo em que publicou no jornal seus últimos ensaios e crônicas, batizado por ele de “textos-ninja”: rápidos e certeiros. Esses textos foram agora publicados em livro, “A Hora da Lâmina”, editado por Felipe Melhado, que também fez o prefácio. O livro foi caprichosamente produzido, de forma artesanal, pela equipe da Vila Cultural Grafatório, em Londrina.
O samurai de quem estou falando é Paulo Leminski, a lenda que andou entre nós, poetas e jornalistas do anos 80, enfiados em lançamentos de livros em bares, quando o escritor, três doses acima da humanidade – porque duas já eram sua condição natural – tratava de literatura com desenvoltura e “falava em línguas” (ele era poliglota) sem a disposição religiosa de falar pelo Espírito Santo. Mas havia um espírito livre nele que argumentava, gesticulava e envolvia todos os que estivessem à sua volta.
Pois é, tive o prazer de estar com Leminski algumas vezes, beber com ele, hospedá-lo num pequeno apartamento onde ficou com a família numa de suas visitas a Londrina, observando sem saber de quem era o imóvel, que “aquilo devia ser casa de mulher”, pelo cuidado na arrumação, alguns quadros e um pequeno abajur estrategicamente colocado na sala.
De lá pra cá, passaram-se muitos anos, na verdade décadas, e ver de novo o samurai nas páginas da FOLHA me deixou emocionada desde o momento em que editei a excelente matéria de Marcos Losnak, que disse o que é essencial para se compreender a importância dessa reunião de seus últimos textos num livro.
No prefácio de Felipe Machado há coisas importantes que ecoam nestes tempos obscuros, quando o corpo volta a ser fustigado por um moralismo do qual achávamos que já estivéssemos livres desde os anos 60, quando a turma coletivamente associava o corpo nu à paz e ao amor. Estou convencida de que é essa mesma a mensagem de corpos desnudos ou vestidos de forma inusitada como um samurai no ocidente, no século 20, ou como um homem sem camisa, com uma flor na orelha, ou que ainda deixou-se fotografar de cuecas para uma reportagem da FOLHA, como fez Leminski.
Os mitos da cultura normalmente são incensados a partir de sua morte, mas Leminski morreu com todos já conscientes de sua relevância. No entanto, não custa lembrar que no momento em que um jornal acolhe artistas literários, poetas loucos, autores alcoólotras e bailarinos que dançam nus, nem tudo são elogios. A liberdade geralmente é bem aceita depois da morte, quando toda transgressão é vista como uma irreverência necessária. Mas tenho a sorte de trabalhar num jornal no qual, historicamente, a liberdade é aceita e qualificada em vida, quando os artistas ainda estão por aqui, mostrando ao mundo que “Corpo não mente”, por acaso, título de um dos ensaios de Leminski que, no prefácio de Melhado, é retomado com uma visada sobre as teorias de Guartari e Deleuze que, por sua vez, retomam o conceito de “corpo sem órgãos” de Antonin Artaud.
E o que seria o “corpo sem órgãos”? Ah! Trata-se do corpo desburocratizado, do corpo que não obedece a regras impostas por uma sociedade que nos quer como máquinas, na qual só podemos ligar a TV e todos os controles remotos dos quais somos uma extensão produtiva. O oposto disso é a liberdade do corpo não institucionalizado, do corpo livre e - por que não? – do corpo sem as roupas que nos travestem de “cidadãos de respeito”, como se só as gravatas nos tornassem “homens de bem”, só que não. O homem de bem é o homem livre, que não cerceia pessoas por conta sua própria censura interna. É o artista como Leminski que vestia quimono e “falava em línguas” sem o componente da censura ideológica, que tirava a camisa e com ela todos os preconceitos do figurino ideal, que punha margarida nas orelhas e ria do mundo caduco que às vezes não compreendia. Por tudo isso, acho que a visita do samurai no último fim de semana, soa como evocação da liberdade em tempos obscuros. Quando o corpo é visto outra vez sob as lentes de quem nunca atingiu o estado original da nudez, sem contaminações, nem a descontração da sociedade burocrática, preconceituosa e moralista. Vendo Leminski em fotos de cuecas ou com seu peito nu, acho que o poeta voltou no tempo certo, usando outra vez suas atitudes e palavras como espada. Pessoas como ele tem a predisposição bélica de lutar contra o mofo no cotidiano, essa é a lição. (Crônica escrita pela jornalista e escritora CÉLIA MUSILLi, celia.musilli@gmail.com página 2, caderno FOLHA 2, 21 e 22 de outubro de 2017, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).
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