Tattoo era só leveza e ainda ouça seu canto
Existem animais que marcam nossa história. Tattoo foi um deles, a gatinha que adotei há dois anos, quando voltei para Londrina, morreu na última segunda-feira (29), num acidente que me deixa pesando minha responsabilidade, ao mesmo tempo em que peso a dor.
Como todos os bichos que partem, ela deixa um vazio no apartamento onde ainda estão suas bolinhas, o rato de brinquedo, a vasilha de ração, a escada que eu deixava permanentemente próxima às janelas, com telas, para que servisse de mirante à Tattoo. De lá ela observava as árvores do Bosque, tinha a vista dos galhos mais altos da peroba, miava quando via os urubus que nunca tinha avistado tão próximos e sentia medo daquelas aves enormes, que planam como um parapente nas correntes do vento.
Nunca lhe faltou inspiração para soltar miados sonoros. Costumava dizer que Tattoo miava de forma artística quando eu chegava em casa e ela me cumprimentava como uma caixinha de música. Tive o privilégio de ter uma gatinha que cantava quando via os urubus ou encontrava sua dona, embora eu nunca tenha voado.
Com a chegada de Grafite, seu parceirinho há pouco menos de um ano, Tattoo ficou mais arisca, gostava do “moleque”, mas ele lhe perturbava a ponto de procurar abrigo nos lugares altos quando queria sossego. Assim, se retirava da folia nas estantes e nos armários que lhe serviam de abrigo. Era no alto que mostrava sua imponência ao “moleque”, com porte esbelto, espiando tudo com os olhos dourados e o pelo que brilhava ao sol e hoje deve estar brilhando como uma estrela.
Na lembrança guardo seus primeiros dias comigo, só eu e ela no apartamento, quando se aninhava perto de mim na hora de dormir e se assustava com o menor ruído. Foi adotada, calculo, depois de ser abandonada nas ruas. A encontrei numa feira de tatuagem que tinha também feirinha de adoção de animais. Por isso não titubeei para lhe dar um nome: seria Tattoo, para alegria do meu filho que é exímio desenhista e quer ser tatuador argumentando que é “ o único desenho bem pago, mãe”.
Tattoo nos deu muita alegria. Até a última segunda-feira quando decidi limpar um pequeno quarto que servia de depósito, o único sem tela na janela. Por isso, sempre mantinha tudo fechado, até resolver deixar uma pequena fresta, de cerca de dois dedos. No vidro de correr para arejar o quarto. Suponho que, horas depois, Tattoo e o “moleque” conseguiram abrir o vidro atingindo um fresta de mais ou menos um palmo, o suficiente para alimentar a curiosidade do que havia lá embaixo, além das paredes do sexto andar. Foi assim que Tattoo saiu para um voo fatal. Sem asas, como os urubus ou os passarinhos dos quais imitava os trinados. A gata esperta e delicada encontrou um meio de ser livre pela única abertura possível da casa, aquela que se encontrava sempre fechada e da qual eu não deveria ter aberto uma fresta.
Dois dedos de fresta significam vento e liberdade, ar puro e novidade. Dois dedos de festa significam um convite ao teste de abrir mais espaço para saciar a curiosidade de verificar o que se passa no mundo externo.
Cansei de encontrar armários abertos e revirados, caixas grandes de documentos sem a tampa, livros atirados do ponto mais alto da estante, tapetes pequenos que mudavam de lugar dentro do apartamento carregados por dois animais inteligentes e brincalhões.
Nunca imaginei que tanta esperteza poderia significar a morte. Restam a caixa de bolinhas e os ratinhos de araque, a escada-mirante para ver o céu, no qual ainda vejo a gatinha confundida com as nuvens. Tattoo foi só leveza, até por isso voou. Ainda que não fosse pássaro, creio que seu maior desejo era ter asas e ainda ouço seu “canto”. (FONTE: Crônica escrita por CÉLIA MUSILLI, celia.musilli@gmail.com página 2, coluna CÉLIA MUSILLI, caderno FOLHA 2, 3 e 4 novembro de 2018, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).
Nenhum comentário:
Postar um comentário