Transcrição da crônica escrita por DOMINGOS PELLEGRINI, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA – 26 e 27 de janeiro de 2019, caderno FOLHA 2, página 2, coluna AOS DOMINGOS PELLEGRINI
Falo a palavra “mulato” e alguém adverte: é politicamente incorreto, pois a palavra vem de “mula”. Por isso mesmo continuarei mulatando em vez de falar “pardo”, essa palavra sem graça e sem história, ao contrário da mula.
A mula, mestiça de égua e burro para as feministas, ou de cavalo e burra para os machistas, já nisso simboliza o destino racial da Humanidade, cada vez mais mestiça. Assim, em vez de sugerir racismo, a palavra sugere integração racial, além de beleza, força e habilidade. Tem barranco que só mula sobe, perigo que só mula pressente.
A mula também tem história, até na própria palavra, que vem do Latima “mulus”, pois já lá na Antiguidade e pela Idade Média afora a mula levou víveres para as civilizações. Impérios foram erguidos sobre patas das mulas. No Brasil mesmo, até metade do século passado, a mula foi o principal meio de transporte, levando no lombo ciclos econômicos como do ouro e do café, além do tropeirismo que tantas cidades fundou.
Na Segunda Guerra, o Brasil exportou mulas para o transporte de carga das forças aliadas na Europa. Onde os jipes não passavam nas estradas cobertas de neve, nossas mulas passavam galhardamente sem nem ganhar medalhas.
Além disso, tenho mula na família: a foto aí acima é de meu avô José, que foi tropeiro, montado orgulhosamente numa mula. Acresce ainda que mulas são bonitas – e então me parece que deixar de usar a palavra “mulata” é apenas sinal de ignorância ou preconceito, essa dupla inseparável.
Menino, ouvi explodir nas rádios o samba Mulata Assanhada, de Ataulfo Alves. “Õ, mulata assanhada/que passa com graça/fazendo pirraça/fingindo inocente/tirando o sossego da gente”...
Ataulfo era mulato, aos oito anos já escrevia versos, conforme Dr. Google, e foi leiteiro, condutor de bois, carregador de malas, menino de recados, engraxate, marceneiro e lavrador. Ou seja, trabalhou feito mula antes de começar a compor aos vinte anos, daí deixando trezentas músicas, um dos mais férteis compositores brasileiros, ao contrário das mulas que são inférteis.
“Ah, mulata, se eu pudesse/e se meu dinheiro desse/eu te dava sem pensa/esta terra, este céu, este mar/e ela finge que não sabe/que tem feitiço no olhar” – os versos de Ataulfo são tão límpidos quanto graciosos.
Mas, ah, a correção política há de notar, a seguir Ataulfo parece consagrar a escravidão: “Ai, meu Deus, que bom seria/ se voltasse a escravidão/eu pegava a escurinha/e prendia no meu coração./ E depois a pretoria/ quem resolvia a questão!”
A correção política se aterá ao desejo de retorno à escravidão, que entretanto é apenas truque poético momentâneo para – com o precioso trocadilho preto/ria – expressar em seguida o desejo de casar com a mulata.
Além do mais, “mula” é palavra feminina a designar o macho e a fêmea, requinte de sua atualidade de gênero.
Mas ainda é preciso lembrar da fábula da mula, de Esopo. No curral onde nasceu, bem alimentada e crescendo bonita, a mula se achava a tal, filha de refinada linhagem mulal. Mas, mal acaba de crescer, é levada a viajar domo mula de carga, descobrindo então seu destino amargo.
Assim, a mula se põe como exemplo de humildade. Obedece. Serve. Aguenta. Resiste. Mas não aceita mau trato, então empaca, como fazem os povos.
George Craig Smith contava que, na primeira caravana para abrir Londrina, no meio da mata a mula chefe empacou e com ela a mulada toda. O guia, um índio velho, falou então na orelha da mula e ela desempacou.
Enfim, assim mula é sinônimo de bom senso, bom gosto e bons modos, enquanto pardo lembra pardieiro e pardacento... Então continuo mulatando!. (FONTE: Crônica escrita pela jornalista e escritor DOMINGOS PELLEGRINI, d.pellegrini@sercomtel.com.br página 3, caderno FOLHA 2, coluna AOS DOMINGOS PELLEGRINI, 26 e 27 de janeiro de 2019, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).
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