Quando mudei para o centro de Londrina vocês eram dois. Pelo menos os via em par sobrevoando a peroba-rosa cravada no meio do Bosque. Ali imagino que fizeram ninhos ou têm tem o local como ponto de repouso, depois de gastar o combustível invisível em voos incríveis que, inspiraram os homens a criar a asa-delta.
Observo como vocês são sábios ao pegar caronas de vento que os fazem planar de um jeito que provoca até inveja, já que sou humana, incapaz de tanta leveza e, quando muito, consigo andar em casa sem fazer barulho.
Vejo quando planam nas manhãs de céu azul e os gatos lá de casa ficam boquiabertos, soltando miados como quem quer caçar, quem sabe voar, mas desistem porque nunca alcançarão o infinito. Vejo que brincam de roda, parecendo crianças numa ciranda, e acho que ensinam troques uns aos outros, furando as nuvens ou voando mais alto e mais baixo, conforme o vento permite. Os senhores urubus, embora feios, têm um sentido incrível de liberdade, caso contrário não experimentariam correntes de ar, em dias de sol ou chuva, às vezes debochando dos trovões que, para sua audição perfeita, devem soar como orquestra.
Ali pela hora do almoço quase não vejo vocês. Devem comer alguma refeição que não ouso descrever por causa dos leitores de estômagos sensíveis. Mas vejo nos textos científicos que os urubus pertencem à ordem dos Cathartiformes e eu são responsáveis pela limpeza de 95% das carcaças que encontram nas cidades e nas zonas rurais. Trata-se de um serviço muito sério, já que sem vocês teríamos que tolerar um mau cheiro muito grande e também teríamos diante dos olhos aquilo que vocês veem lá de cima e vêm recolher com a limpeza dos faxineiros prestativos. Portanto, muito obrigada, senhores urubus, pela limpeza diária pela qual vocês nunca foram pagos, embora mereçam uma taxa de limpeza pública na forma de comidas frescas, que não são exatamente seu cardápio.
Voltando à narrativa dos píncaros dos prédios no entorno do Bosque, testemunho que vocês desaparecem na hora do almoço, talvez se alimentando, talvez fazendo a ‘siesta’ nas árvores, sumindo entre as folhas ou camuflados como se fossem um galho. Já os vi dançando ao vento como se ouvissem uma valsa, pendurados sem se perturbar com a altitude. Para os senhores, 15 ou 20 metros acima o chão não significam nada. Acho que se perturbam mais se tiverem que descer ao asfalto e observar como vivem mal a espécie humana, com seus carros barulhentos freando como quem freia a raiva no último segundo.
Quando me mudei para o centro, sempre vi os senhores em par, mas com o passar do tempo sua família cresceu e hoje vejo no mínimo seis ou sete brincando de roda. Sem contar que no prédio dos Correios acontece sempre uma assembleia de urubus ali pelas 18 horas, uma reunião em família para que contem os feitos do dia. “Devorei um rato”!” “Consegui umas pernas de galinha!” ou “Tinha um banquete incrível na lixeira!”.
Nos Correios, sua família de urubus pousa em fila em cima do edifício, sempre há dois ou três apertando-se em meios às palavras “Correios e Telégrafos”, escritas em concreto, que servem de bancos de anedotas para suas conversas. Ali, já vi alguns dos senhores rindo enquanto balançam os papos e acredito que gostem de mensagens, mais que isso, costumam ser mensageiros, ainda que dou mau agouro.
Suponho que nem todos vejam vocês, embora estejam sempre nos mesmos lugares: da copa das árvores ou voos no céu, dos galhos mais baixos ao prédio dos Correios de onde, depois, desparecem para dormir num ponto bem mais alto que as pombas.
Chego à conclusão que as pessoas não reparam nos senhores porque vivem de olhos baixos, resolvendo problemas do cotidiano, e não têm tempo de ver a poesia numa família de urubus que só sabe voar, comer e enviar mensagens mudas num WhatsApp improvisado no alto dos prédios.
Mas é neste ponto que os vejo mais próximos da vizinhança humana e lhes dou bom dia e boa noite, pensando quais serão seus sonhos e como conseguem reunir a filharada num horário em que todas as famílias humanas assistem à televisão, enquanto as crianças se distraem com jogos eletrônicos. Diante disso, penso na fraternidade dos urubus ao longo dos séculos e me despeço agradecendo sua presença num centro urbano tumultuado, onde vocês praticam a limpeza como quem pratica a caridade. Muito obrigado pelo seu trabalho honesto e me desculpem pelo atraso do “pagamento” por dias mais limpos e voos mais longos pelo imaginário que me oferecem sem pedir nada em troca. Deus proteja os urubus! (FONTE: Crõnica escrita pela jornalista CÉLIA MUSILLI, celia.musilli@gmail.com caderno FOLHA 2, página 2, coluna CÉLIA MUSILLI, 23 e 24 de fevereiro de 2019, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).
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