Com a morte dos chargista da revista francesa Charlie Hebdo,
tem gente perguntando ou mesmo afirmando que dentro da ideia de liberdade de
expressão irrestrita cabem o bullying, a ofensa pessoal, etc. Não se trata
disso. Uma coisa é criticar pessoas com a intenção de ofendê-las, outra é
criticar idéias. Uma coisa é chamar Ibrahim ou José de ignorantes porque seguem determinada religião, outra é
por em xeque os dogmas religiosos. A religião não está isenta de críticas, como
qualquer outro sistema de ideias. O capitalismo, o comunismo, o
islamismo, o cristianismo são ideologias passíveis de discussão e crítica, numa
sociedade acostumada a pensar para ampliar sua capacidade de abstração.
Publicações como a Charlie Hebdo não existem para levar a consensos, mas a complicações. São do tipo que criam confusão para poder pensar. Charlie, que muitos de nós só passamos a conhecer por causa deste episódio trágico, é herdeiro de uma tradição cáustica de imprensa que não é nova. Aqui no Brasil, temos pegadas disso desde o Barão de Itararé e tivemos no Pasquim um exemplo vigoroso de um jornalismo que preconizava o politicamente incorreto, incluindo nas suas páginas coisas indigestas para o período em que foram publicadas, como os palavrões. A entrevista de Leila Diniz foi um “Deus nos acuda”, no sentido de abrir para a sociedade conservadora uma linguagem considerada então vulgar, inadequada, de coisas que não deviam estar na “sala de visitas”.
O Charlie é um jornal ateu que reivindica o direito de ser ateu, coisa que até o século 18 valia a fogueira. Hoje não temos fogueiras no sentido clássico da Inquisição, mas sobram tribunais por toda parte, inclusive nas redes sociais. Neste sentido, publicações que se utilizam do que é considerado “basfêmia”, nada mais fazem que mostrar no espelho uma violência que está implícita nas culturas, basta ver o que ocorre na Nigéria no momento em nome da fé. Publicações como Charlie não abrem discussões para chegar a um consenso com leitores, mas para tratar também da liberdade de expressão não apenas para as coisas “certas”, mas para aquilo que a sociedade é o torto, o avesso, o politicamente incorreto para usar uma expressão da moda. Sou favorável ao livre pensar, como dizia Millôr Fernandes, “é só pensar” este tipo de inquietude acomete alguns indivíduos mais que outros. Gosto da inquietude, ainda que fuja aos padrões de adequação, é assim que o mundo gira e vai ficando menos quadrado, ainda que seja na marra. O “equilíbrio” pretendido às vezes aparece lá adiante, aos trancos e barrancos, ainda que se pague com a vida como no caso dos chargistas do jornal francês.
O respeito aos direitos individuais – o direito das pessoas – deve ser garantido sempre. Isso significa, inclusive, a liberdade de cada um pensar e expressar o que quiser em relação a ideologias que não tem “direitos garantidos”, porque são um sistema de idéias , sujeitos a críticas, das melhores às piores, sem censura, porque isso limitaria o exercício do pensamento, matéria-prima de que são feitas estas mesmas ideologias que não devem ser tratadas como tabus. E lícito discutir qualquer coisa, de política a religião. O problema é o tabu, a idéia do intocável. O Charlie e outros jornais na mesma linha não são feitos para que as pessoas concordem ou discordem dele, mas sim para que se garanta o direito de pensar, escrever e promover a diversidade de idéias e só os compra quem quer. Se o conceito de Deus é tão óbvio para alguns e formatado dentro de um parâmetro regular, para outros é vago, insustentável ou inexistente. Para mim, por exemplo, Deus não é uma entidade calcada na figura de um Pai severo que aplica castigos. Deus é algo assim como uma nuvem, móvel e adaptável a cada cultura: de Tupã a Jeová. Para um ateu, como no caso dos jornalistas do Charlie, Deus é apenas uma fantasia e como tal pode ser tratado com um humor sem limites. Não vejo mal nisso, piores são os que se matam por uma idéia preconcebida e que se pretende intocável. Precisamos entender que as pessoas têm idéias mas não são as idéias . As idéias mudam a todo instante ou de tempos em tempos, a concepção de um mundo antropocêntrico ou teocêntrico está sempre em mutação, até por isso toda abstração é válida. O mundo das idéias é o mundo da abstração. Pensar é lícito, expressar o pensamento também. A gente não pode matar pessoas, mas podemos querer “matar” uma idéia, até com críticas duras. Foi isso que os jornalistas do Charlie tentaram sem disparar nenhum tiro. (Textro escrito por CÉLIA MUSILLI, celiamusilli@terra.com.br, extraído da Folha 2, pag 4, publicação da FOLHA DE LONDRINA, domingo, 18 de janeiro de 2015).
Publicações como a Charlie Hebdo não existem para levar a consensos, mas a complicações. São do tipo que criam confusão para poder pensar. Charlie, que muitos de nós só passamos a conhecer por causa deste episódio trágico, é herdeiro de uma tradição cáustica de imprensa que não é nova. Aqui no Brasil, temos pegadas disso desde o Barão de Itararé e tivemos no Pasquim um exemplo vigoroso de um jornalismo que preconizava o politicamente incorreto, incluindo nas suas páginas coisas indigestas para o período em que foram publicadas, como os palavrões. A entrevista de Leila Diniz foi um “Deus nos acuda”, no sentido de abrir para a sociedade conservadora uma linguagem considerada então vulgar, inadequada, de coisas que não deviam estar na “sala de visitas”.
O Charlie é um jornal ateu que reivindica o direito de ser ateu, coisa que até o século 18 valia a fogueira. Hoje não temos fogueiras no sentido clássico da Inquisição, mas sobram tribunais por toda parte, inclusive nas redes sociais. Neste sentido, publicações que se utilizam do que é considerado “basfêmia”, nada mais fazem que mostrar no espelho uma violência que está implícita nas culturas, basta ver o que ocorre na Nigéria no momento em nome da fé. Publicações como Charlie não abrem discussões para chegar a um consenso com leitores, mas para tratar também da liberdade de expressão não apenas para as coisas “certas”, mas para aquilo que a sociedade é o torto, o avesso, o politicamente incorreto para usar uma expressão da moda. Sou favorável ao livre pensar, como dizia Millôr Fernandes, “é só pensar” este tipo de inquietude acomete alguns indivíduos mais que outros. Gosto da inquietude, ainda que fuja aos padrões de adequação, é assim que o mundo gira e vai ficando menos quadrado, ainda que seja na marra. O “equilíbrio” pretendido às vezes aparece lá adiante, aos trancos e barrancos, ainda que se pague com a vida como no caso dos chargistas do jornal francês.
O respeito aos direitos individuais – o direito das pessoas – deve ser garantido sempre. Isso significa, inclusive, a liberdade de cada um pensar e expressar o que quiser em relação a ideologias que não tem “direitos garantidos”, porque são um sistema de idéias , sujeitos a críticas, das melhores às piores, sem censura, porque isso limitaria o exercício do pensamento, matéria-prima de que são feitas estas mesmas ideologias que não devem ser tratadas como tabus. E lícito discutir qualquer coisa, de política a religião. O problema é o tabu, a idéia do intocável. O Charlie e outros jornais na mesma linha não são feitos para que as pessoas concordem ou discordem dele, mas sim para que se garanta o direito de pensar, escrever e promover a diversidade de idéias e só os compra quem quer. Se o conceito de Deus é tão óbvio para alguns e formatado dentro de um parâmetro regular, para outros é vago, insustentável ou inexistente. Para mim, por exemplo, Deus não é uma entidade calcada na figura de um Pai severo que aplica castigos. Deus é algo assim como uma nuvem, móvel e adaptável a cada cultura: de Tupã a Jeová. Para um ateu, como no caso dos jornalistas do Charlie, Deus é apenas uma fantasia e como tal pode ser tratado com um humor sem limites. Não vejo mal nisso, piores são os que se matam por uma idéia preconcebida e que se pretende intocável. Precisamos entender que as pessoas têm idéias mas não são as idéias . As idéias mudam a todo instante ou de tempos em tempos, a concepção de um mundo antropocêntrico ou teocêntrico está sempre em mutação, até por isso toda abstração é válida. O mundo das idéias é o mundo da abstração. Pensar é lícito, expressar o pensamento também. A gente não pode matar pessoas, mas podemos querer “matar” uma idéia, até com críticas duras. Foi isso que os jornalistas do Charlie tentaram sem disparar nenhum tiro. (Textro escrito por CÉLIA MUSILLI, celiamusilli@terra.com.br, extraído da Folha 2, pag 4, publicação da FOLHA DE LONDRINA, domingo, 18 de janeiro de 2015).
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