Os escritores garimpam a preciosidade onde está o corriqueiro e quase sempre inauguram minas
O gato se aproxima quando estou no meio da leitura, folgado, se interpõe entre as páginas e os meus óculos. Instintivamente falo: “Saia, estou estudando”. E só então me dei conta que ler é muitas vezes estudar, sobretudo para quem escreve.
Observo a escolha das palavras, as figuras de linguagem que clareiam e obscurecem o texto. Percebo que os autores refinam a língua ou a embrutecem, fazem delas veículo de memórias, usam-na para amarrar realidade e ficção.
É disso que trata a resenha sobre “Mil rosas roubadas”, livro de Silvano Santiago, analisado pelo escritor e professor de literatura da UERJ Italo Moriconi. O resenhista se ocupa justamente em descobrir onde termina a realidade e começa a ficção, deixando claro que os romances biográficos ocupam-se de unir as pontas do impossível. Poucos autores assumem que sua ficção é trespassada pela realidade. Mas a verdade é que ao enxotar um gato ou despedir-se de um amigo, um novo texto começa.
Os cronistas estão sempre procurando assunto, garimpam a preciosidade onde está o corriqueiro e quase sempre inauguram minas. Penso nas brincadeiras de Domingos Pellegrini com os netos e vejo-o como um taxidermista prendendo borboletas num texto para a eternidade. Ali, onde ele fixa a fantasia, fica também a memória, resultando a função das crônicas e das fotografias.
Penso que Paulo Briguet muitas vezes se inspira na própria fé para tomar os ares de Santo Agostinho urbano que faz da Avenida Paraná sua praça de reflexão cristã, permeada por “confissões” que, decerto, exigem coragem. Penso no professor Marco Rossi que une as pontas da Sociologia à cidade onde vive e da qual faz seu laboratório de experiências políticas e culturais. Em todos os casos, lá está o homem, seu conhecimento e sua imaginação.
A julgar pela resenha, o livro “Mil coisas roubadas” humaniza Salviano Santiago, a quem entrevistei sobre a cultura da América Latina há alguns anos. No livro, resplandece o homem no lugar do estudioso. Moriconi mostra como a amizade do autor com Ezequiel Neves, na Belo Horizonte dos anos 50, funcionou como a aproximação de um acadêmico com um garimpeiro do rock. Duas personalidades distintas, um dedicado à alta cultura e outro dedicado ao pop. Uma amizade improvável e um amor e um amor mais improvável ainda, naquilo que Moriconi chama de “anamese de um histórico sentimental”.
Na resenha está implícita a arte de Santiago em ficcionalizar, encenar, figuras numa busca incessante de metáforas que deem conta da vida e, sobretudo, do amigo morto.
Talvez a arte do escritor esteja no jogo de documentar a realidade com o preenchimento da ficção, porque de subjetividade também é feita a literatura. Diante da morte do amigo Ezequiel Neves, o professor, pesquisador e historiador de carreira bem sucedida, Silviano Santiago, encheu-se de ternura, única condição pura da vida, para traçar a trajetória de dois adolescentes muito diferentes que se encontraram e se completaram nas lacunas. Algumas biografias contêm o esforço da lembrança e o voo do que poderia ter sido e não foi. Quase toda literatura é composta deste vácuo, no qual a invenção substitui a falta.
Mas ela também pode nascer da memória das coisas corriqueiras, como quem tropeça na ingerência de um gato e escreve sobre a pequena viagem que nos permite ler um texto como quem estuda e, no ato, recupera o olhar sobre a escrita e seus significados. FONTE: Crônica escrita pela jornalista e escritora CÉLIA MUSILLI, celia.musilli@gmail.com página 2, caderno FOLHA 2, coluna CÉLIA MUSILLI, 3 e 4 de março de 2018, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).
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