Um dia a gente chega à idade de evitar
carregar peso. Em viagem de avião então, malona pesada tem de ser despachada,
sujeita a extravio e, quando chega ao destino, temos de esperar na esteira. E
passa mala, passa mala, a tua não aparece e você vai ficando agoniado. Finge
que não mas, quando vê, está com a boca azul de roer caneta. Vai ao sanitário rapidinho,
receando que enquanto lava a boca levem tua mala (há tantas iguais!), mas, lá
está ela girando na esteira à tua espera.
Você sorri, para mostrar descontração, e te olham estranhamente, você lembra que os dentes ficaram azuis da
tinta da caneta. Mas isso passará, o importante no momento é cuidar da mala, a tua vida
empacotada fora de casa.
Durante décadas suportei as reclamações da
coluna, vértebra por vértebra, até me tornar o último ser humano a comprar mala
com rodinhas. Mas, saindo do piso lisinho do aeroporto, nas calçadas da vida as
rodinhas trepidam, saltitam, rangem, estralam, apanham mais que cachorro em
escola de samba.
Então resolvi levar só bagagem de mão,
mochila com pouco peso, portanto portátil, e fui descobrindo truques e
artimanhas.
Levo só duas calças de jeans azul marinho,
que “não sujam”. Se uma sujar tanto que a sujeira apareça, lavo enquanto uso a outra.
Meias e cuecas levo três ou quatro no máximo, sempre lavando
de noitinha as usadas durante o dia. A não ser que o ar esteja muito úmido , secam até de manhã e voltam sequinhas
para a mochila. Senão, embrulho em plástico e lavo no dia seguinte.
Camisetas, vão enroladas como lingüiças de
pano na mochila. Uma só camisa social,
pra o caso de algum jantar mais formal, enrolada também ( para usar, mando passar a ferro, ou passo eu mesmo,
usando garrafa com água quente no quarto do hotel, truque que aprendi com
camelô na Pensão Alto Paraná.
Levo sempre tubo de pasta de dente já
quase no final, para não levar e trazer de volta nenhum peso desnecessário.
Detesto a palavra “nécessaire”. Parece meio
gayce e meio madamice, deve ser preconceito meu, mas o fato é que nela levo o
mínimo possível de coisas: um pente pequeno, uma pinça, fio dental, escova de dentes. Embrulhada em plástico vai a
folha de babosa que esfrego pedaço a pedaço na cabeça como creme para cabelo.
Dalva acha que posso ser preso por contrabando vegetal, mas digo que, mesmo que
não tivesse a babosa, já estaria viajando com uma flor...
Uma jaqueta dupla-face va i no corpo, uso
num dia sua face de couro fosco, noutro
dia sua face de couro liso, assim Dalva não enjoa de me ver sempre com a mesma
roupa.
Nos pés, os mesmos sapatênis heróicos que já palmilharam as trilhas de
Machu Pichu e as ruelas de Roma. Sandálias ficam em casa, até porque, assim,
tenho para quem voltar – com a roupa fididinha de mal lavada, conforme Dalva,
mas leve como um passarinho, enquanto ela espera sua mala na esteira.
Até que me apaixono por um
livro de 900 páginas numa livraria, a mochila passa do peso permitido e tem de
ser despachada. Será que depois dos 60, terei de comprar um tablet para ler e-books?
E tom o cuidado ao tomar café: se derramar
terei de lavar as calças! Já aconteceu, numa viagem que fui só com as calças do
corpo, e tive de lavar e gastar uma manhã no hotel esperando secar. Não é fácil
a vida de escritor artimanhoso ou, conforme Dalva, teimoso que só. ( Texto do escritor DOMINGOS PELLEGRIN I, d.pellegrini@sercomtel.com.br,
publicado no JORNAL DE LONDRINA, domingo, 19 de Outubro de 2014).
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