Já sambei no asfalto e já fugi para as montanhas, nas quais só se ouvia os sinos de uma igreja de Minas
O carnaval tem o dom de provocar os desejos mais esquisitos, os excessos, a luxúria, a vontade de tomar porres homéricos. No fundo, o carnaval é a maior fuga da realidade que conheço, mas em vez de criticar, me divirto. Tenho amigos que já estão há uma semana bebendo cachaça só para “pensar na folia. “Tenho amigos que vão ao fundo do baú buscar as roupas para se vestir de mulher. Tenho amigos que já pegaram a vara de pescar e foram para a barranca do Tibagi, onde não se ouve um único alalauê. Tenho amigos que compraram livros e vão passar o carnaval entre as páginas. Tenho amigos que já colocar no seu kit básico algumas cervejas e o menu incrível das séries do Netflix.
Eu fico entre a cruz e a espada, entre a folia e o descanso, não radicalizo como quem vai sambar na Bahia, com aquele orgulho de suar um abadá no meio da multidão que transpira e se esfrega como se curtisse o Inferno de Dante. Tampouco me esquivo do ronco de uma cuíca porque acho o samba um dos apelos mais próximos da minha ideia de gozar o paraíso.
Por conta disso, já arrastei sandálias no asfalto e já fugi para as montanhas onde só se ouve o sino de uma igreja de Minas. Já me mandei para a Ilha do Mel e para Ilhabela, já fui a Paraty só para ver o artesanato e a praia. Já vi o carnaval de Pernambuco e o carnaval dos paulistanos quando nem se ouvia falar de blocos e a capital era quele “túmulo do samba” profetizado por Vinícius de Moraes que, pelo bem ou pelo mal, foi parceiro de Adoniran Barbosa.
Não me incomodo com a folia dos outros, nem com sua calma diante do furacão que assola o país quando chega fevereiro. Apenas peço a Deus que não haja violência e que nem uma bala perdida se confunda com o som dos surdos e dos tamborins.
Uma de minha aventuras no Carnaval se deu numa praia quase deserta quando, numa tempestade, estava no meio da mata e me senti como uma vietcong naquelas cenas do filme de guerra, era só lama e pânico. Este foi um dos poucos momentos em que desejei estar assistindo ao carnaval na Globo.
Neste carnaval, pode prevalecer meu desejo de sambar ou me acomodar na poltrona para ler contos carnavalescos de João do Rio ou de Clarice Lispector. Dele vem o espetacular “O Bebê de Tarlatana Rosa”, dela o inesquecível “Restos de Carnaval”, memórias de infância quando ela se fantasia de rosa.
A beleza do carnaval é fazer parte da cultura brasileira, uma espécie de flor de raiz profunda que nos liga a nossas sensibilidades e lembranças. De um alerquim guardo um dos melhores beijos de um romance que “não subiu a serra”. Outra boa memória foi ter sambado pra valer com um dos meus filhos, então com dez anos, a alegria do moleque, trançando as pernas, valeu as horas de suor na avenida.
Cada um tem o carnaval que merece ou que padece. A escolha é nossa. Entre a alegria e a tristeza, não dispenso uma boa fantasia, a de ser feliz nestes quatro dias de respiro, antes de começar o ano pra valer. Não devemos recursar a alegria , ainda que passageira ela nos sopra as feridas, o que é muito melhor do que ficar cutucando as cascas. O carnaval, no fundo, é um parênteses no baque surdo do cotidiano. Que cada um crie a sua própria bateria de desejos, no lugar de maldizer as frustrações. Bom carnaval! (FONTE: (Crônica escrita pela jornalista e escritora CÉLIA MUSILLI, celia.musilli@gmai.com caderno FOLHA 2 , ágina 2, coluna CÉLIA MUSILLI, 10 e 11 de fevereiro de 2018, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).
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