Pedem-me uma “entrevista personalizada”. A ideia é selecionar itens que façam parte da minha história e sobre as quais eu posso falar mostrando porque são importantes. Ao todo, me dão a chance de escolher nove objetos afetivos. Desde que me chamaram para o jogo, já percorri mentalmente minha trajetória e meu pensamento foi parar nos pratos do antigo jogo de jantar da minha mãe. A maioria das peças está amarelada, mas uso as clarinhas em dias de festa. Ants de irem à mesa sempre lavo cada uma lembrando-me das mãos dela sob a água da torneira, com a eterna aliança de casada. Dos meus dedos escorrem também água e sabão, mas já usei tantos anéis quantos os anos de liberdade e penso que eles são acessórios importantes de algumas fases da vida em que lavei e enxuguei dúvidas, além das certezas.
O anel de elefante era uma espécie de talismã que um dia perdi lavando a louça quando o deixei sob o parapeito da janela da cozinha. Então o elefante voou, talvez tenha feito uma viagem à Índia, talvez tenha simplesmente escorregado para uma lixeira levando consigo uma partícula das minhas manias ou dos apegos que me levam a acreditar na sorte. A verdade nunca saberei, esse é o mistério dos objetos perdidos, ninguém sabe para onde vão. No seu silêncio de coisas inanimadas não fazem não fazem barulhos como animais e pessoas, não emitem sons nem pedido de socorro, quando muito dão um pequeno sinal quando caem ao chão.
Entre os objetos perdidos, aqueles que não farão parte da “entrevista personalizada”, tem ainda um relógio de meu pai, perdido numa mudança quando a falta de experiência deixou-me descuidar de algumas coisas que deveriam ir para uma caixinha fechada e guardada comigo, não nos embrulhos, nas caixas de papelão, nas gavetas que todos reviram. O relógio ainda deve funcionar e penso que essa sobrevida, longe dos meus olhos, tem o sentido de mostrar que algumas coisas existem mesmo sem nós. E elas existem com outros significados, dados por quem encontrou o relógio e se alegrou em achá-lo mesmo sabendo que faz parte de outra história. Uma das coisas que me doem foi ter perdido toda minha coleção de discos de vinil. Eram parte da minha festa particular desde a adolescência, quando a música tomava conta do meu quarto. Dos Beatles a Led Zeppelin, de Bob Dylan a Laurie Anderson, passando por clássicos como a “Fantasia” de Stravinsky e “As Quatro Estações” de Vivaldi, tudo me remete a momentos de solidão consentida, quando me trancava para ouvir o que quisesse, ou momentos de alegria compartilhada quando ouvia com os amigos as mesmas músicas como se fosse a primeira vez. Saudade mesmo tenho dos blues de B. B. King, aquele seu “Live In Cook County Jail”, gravado numa prisão em 1971, quando ele conseguiu “libertar” os detentos enquanto durou o show. Também sinto um aperto ao lembrar da malemolência de um vinil rodando com a poesia de Caetano Veloso.
Muitos dos objetos que fazem a minha história tomaram rumos imagináveis e disso deriva sua importância como memória. Posso dizer que aquilo que fica com a gente não é menos importante do que aquilo que se foi. E isso vale para anéis, discos, livros, casas e também pessoas. A história nem sempre é o que fica, mas o que se coloca longe do nosso alcance, perdendo a materialidade e fixando-se como lembrança que nenhuma perda apaga. Talvez, numa “entrevista personalizada” possa constar não só aquilo que se tem, mas o que se perdeu e ainda existe como a teimosia das coisas importantes. (FONTE: Crônica escrita pela jornalista e escritora CÉLIA MUSILLI celia.musilli@gmail.com página 2, caderno FOLHA 2,lacuna CÉLIA MUSILLI, 3 e 4 de fevereiro de 2018, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).
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