A chamada prescrição social se baseia no fato de que muitos pacientes têm fragilidades que afetam a saúde mas não respondem às abordagens clássicas. |
Publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA, dia 26 de agosto de 2019, FOLHA SAÚDE
SÃO PAULO – Médicos brasileiros estão adotando intervenções tradicionais que associam a prática clínica tradicional com indicações de livros, atividades físicas e lúdicas para aliviar quadros de tristeza, ansiedade, insônia e até demência. Conhecida internacionalmente como “prescrição social”, a prática já vem sendo adotada em serviços de saúde na Inglaterra, Austrália e Escandinávia No Brasil, há iniciativas isoladas de profissionais.
A prescrição social se baseia no fato de que muitos pacientes têm fragilidades e condições que afetam a saúde mas não respondem às abordagens médicas clássicas, como a prescrição de remédios. Nestes caos, estudos têm demonstrado que o encaminhamento a grupos comunitários, por exemplo, podem promover melhoras no bem estar físico e mental, reduzir isolamento social e uso dos serviços de saúde.
Nas redes de atenção primária do sistema de saúde inglês (NHS), a prescrição social já faz parte de um programa público que permite atender 1 milhão de pessoas até 2023. No início deste ano, a médica de família Júlia Rocha, de Belo Horizonte (MG), prescreveu como tratamento complementar a um paciente deprimido a leitura de obras de escritores como Djamila Ribeiro , autora de “O Que É Lugar de Fala” e “Quem Tem Medo do Feminismo Negro”, e vídeos dos youtubers negros Spartakus Santiago e AD Junior.
O paciente, um jovem negro, evangélico e gay, carregava muita culpa ligada à sexualidade. Mesmo usando antidepressivos e com apoio psiquiátrico e psicológico, tinha tentado suicídio dois meses antes por “não conseguir corrigir sua sexualidade”. Com a prescrição inusitada na folha do receituário , a médica diz que a intenção era propor ao jovem um novo olhar sobre a sexualidade e a negritude.
No encontro seguinte, ela conta que o paciente já tinha repassado a “receita “ a amigos e que estava namorando. Segundo ela, as prescrições sociais são únicas e muito específicas. Como trabalha no SUS, com ma população muito pobre, pessoas analfabetas e sem acesso à internet, muitas vezes as encaminha a grupos na comunidade. Em um deles, aprendem crochê e artes em tecidos. “Idosas e idosos entristecidos, sozinhos, melhoram muito”.
FEIRA E TAICHI
O geriata, José Carlos Velho, adota a prescrição social até em casos leves, de demência em que os medicamentos são escassos e os resultados bem modestos. Para estimular pacientes com dificuldades cognitivas, ele recomenda fazer compras em feiras livres. “A pessoa precisa planejar a compra, caminhar, escolher produtos, pagar. Isso levas às inserções sociais. A feira é um lugar de estímulos visuais sonoros, gustativos e olfativos”. A prescrição, no entanto, nõ serve para todos. “Pessoas que nunca fizeram feira ou que podem ficar mais inquietas com multidão e agitação provavelmente não vão se adaptar.”
Adepto do tai chi chuam, o geriata também recomenda a prática aos pacientes, embora reconheça que a aderência não seja grande. “A aderência talvez seja um dos grandes problemas dessas abordagens, pois elas só fazem sentido e trazem benefícios a longo prazo e com persistência.
O dramaturgo Sérgio Roveri, 58, foi um dos pacientes que aderiu a prática desde outubro do ano passado. Diz eu conseguiu reduzir a ansiedade, dormir melhor e manter o corpo alongado. “ O tai chi trabalha a postura, o equilíbrio e a respiração. E tem os simbolismos. As posturas de desvio de golpe, por exemplo, nos ensinam a desviar dos problemas, não deixar que as coisas nos atinjam.”
'UMA PROVOCAÇÃO MAIS SUAVE’
Para o Rodrigo Lima, um dos diretores da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, a prescrição social demanda bom vínculo com o paciente, e abertura para sugestões que fogem à prática clínica tradicional. “Costumo indicar livros para pacientes com depressão e ansiedade, que são condições para as quais os medicamentos só aliviam os sintomas. O que resolve o problema é a pessoa trabalhar questões internamente. Quando conheço livros que podem trazer uma reflexão para o paciente, por que não indicar? Recentemente ele prescreveu “O Demônio do Meio Dia “, de Andrew Solomon, e “Sidarta” de Hermann Hesse, para uma paciente com depressão.
Para a psiquiatra e médica de família Michelle Barbosa, as indicações de livro podem funcionar quando o paciente tem bagagem cultural que permita fazer reflexões necessárias para a sua própria história. Em situações de luto, ela já indicou “Sermões de Quarta-Feira de Cinzas” do padre Antonio Vieira (1608-1697. São três sermões lindos que tratam da importância da morte na vida humana.”
Para adolescentes ela recomenda “A Sutil Arte de Ligar o Fda-Se. Uma estratégia inusitada para uma vida melhor” (Mark Manson).
Eles dão elemento para trabalhar o que é dor, sofrimento, o que é fato e o que é manejo pessoal. Os pacientes marcam os trechos do livro que mais os incomodam e a gente discute na consulta seguinte. É uma provocção mais suave”.
“A Arte da Guerra” (Sun Tzu) é sugestão para lidar com problemas do dia a dia de forma mais prática. “É um bom recurso psicoterapêutico para as consultas de curta duração que eu faço no SUS”. Explica a médica.
É PRECISO AVALIAR A REAL EFICÁCIA
Uma revisão recente publicada no BMJ (British Medical Journal) diz que a evidência atual ainda é insuficiência para convencer uma orientação definitiva sobre quais intervenções ligadas a prescrição social realmente funcionam e como isso ocorre. Segundo os autores, muitas das avaliações sobre a prática são de pequena escala e faltam medidas padronizadas de resultados para que seja possível avaliar a real eficácia.
Para atuar nas lacunas da evidência, eles sugerem que os programas tenham claros os impactos pretendidos e os mecanismos que serão usados para alcança-los. O NHS inglês, por exemplo, está medindo os resultados nas pessoas (ela se tornou mais capaz de gerenciar seus próprios cuidados?) e no sistema de saúde (como mudança no número de consultas médicas ou de idas a hospitais).
Na opinião do médico Gustavo Gusso, professor de clínica médica da USP, no Brasil, essa função de prescrição social ficou meio perdida entre os integrantes das equipes de saúde da família e comunidade. “No SUS, em áreas mais bem estruturadas, as equipes têm assistente social, psicólogo, mas não fica muito claro de quem é esse papel (de prescritor social). Muitos médicos têm a expectativa de que seja da assistente social, mas ele próprio poderia fazer isso, “
Para Gusso, o que precisa é um treino maior, com protocolos bem definidos e medição de resultados como qualquer outra prescrição médica. “Nas equipes de saúde da USP, temos muito claro quais os equipamentos sociais próximos que podem colaborar, como igrejas que oferecem atividades físicas e lúdicas. Mas não está organizado, protocolado. E não é tão claro que a prescrição social possa ser uma atribuição do profissional médico também.”. (CC). (FONTE: CLAUDIA COLUCCI – Reportagem Social, FOLHA SAÚDE, segunda-feira, 26 de agosto de 2019, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).
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