Chove, o caixa automático lotou, guarda-chuvas a pingar em sandálias, maquiagens a escorrer, uma dúzia de tipos tão diferentes quanto próximos: gravatas roçando em tatuagens, os mais diversos cheiros socioeconômicos, do perfume da vovó de cabelos vermelhos ao ciclista suadão de capacete, enquanto alguém espirra e outro diz lá vem gripe, aí uma voz fala alto: ei, alguém pegou meu celular!
Silêncio instantâneo: afinal, trata-se do bem mais conhecido e querido, o companheiro de todas as horas e até minutos, a paixão dos jovens e o xodó dos idosos, e o sujeito de macacão fala ainda mais alto:
- E quem pegou meu celular continua aqui dentro.!
Todos se olham aturdidos até um guri falar abraçado ao esqueite:- Liga pra ele, ué.
Um de jaqueta diz que desligar o celular é a primeira coisa que o ladrão faz, mas um engravatado diz que não custa tentar, oferecendo o próprio celular ao de macacão. Ele liga no silêncio, só se ouve a chuva lá fora e finalmente: - Tá desligado.
Era um ifone novinho, ele geme, pra pagar em doze vezes... Mas isso não ficar assim, diz o de jaqueta:
- Eu sou policial e vou revistar quem sair.
- Mas – a vovó cantarola – mulher tem de ser revistada por policial feminina...
Já vi que a senhora é da turma dos direitos humanos, diz ele, mas o engravatado diz que ela tem razão:
- Eu sou promotor e, diante da peculiaridade da situação, sugiro que uma cidadã reviste a outra, são só duas mulheres, não?
- Não, querido – sussurra uma voz rouca. Eu sei que não pareço mas sou mulher. Ainda, mas de operação marcada.
- O guri de esqueite põe pra fora das bermudas os bolsos vazios e ergue a camiseta mostrando a barriga. Você pode sair, diz o policial, mas ele continua ali dizendo eu quero ver o que vai rolar, chefe, parece gibi. O promotor diz que, ao contrário, precisa sair pra audiência, e já vai saindo, a vovó puxa pelo paletó:
Sem revista, não! É, pois se promotor precisa de auxílio moradia e auxílio alimentação, pode bem meter a mão num celular, não?
Outro engravatado diz que é um acinte:
- Sou advogado, excelência, e nem sei o que dizer.
Eu digo que meu celular continua sumido, geme o de macacão, e minha mulher tá grávida, o celular pra mim é tudo. Sou eletricista. Como apoiando, as luzes piscam e apagam, mas os caixas automáticos continuam acesos. Eles têm no-breique, diz o guri, e todos olham para ele com respeito. Essa moçada sabe tudo, diz alguém, mas ele diz que não:
A gente não sabe ganhar dinheiro, tio.
As senhoras podem se revistar, diz o policial, e a vovó diz que será uma honra ser revistada por uma grávida tão simpática, mas a outra mulher abaixo os olhos dizendo que não está grávida:
- Sou só barrigudinha mesmo... Mas também sou consciente dos meus direitos, mesmo não usando gravata, e sei que só por lei a gente pode ser obrigada a fazer alguma coisa, não é?
É, engole o promotor, e o policial olha para o teto baixo suspirando fundo. Bom, diz um velhinho japonês até agora quietinho:
- Pra revista não precisa tirar roupa, né?
Na verdade, diz o engravatado, o certo é chamar a PM. O guri ri:
- Ih, tio, se não tiver sangue na parada, eles demoram horas, tem meia dúzia de viaturas pra cidade toda.
Mas lá no quartel, diz o de macacão, tem dezenas de viaturas encostadas esperando conserto. É verdade, diz o policial:
E na delegacia tá faltando até papel higiênico.
O que mais falta é vergonha, diz a vovó, e o engravatado aponta um celular sobre o caixa automático, não é aquele? Pega, liga, lembra: - Será que eu tinha desligado?
Ninguém responde, a chuva passou e automaticamente o caixa esvazia. (FONTE: Crônica escrita pelo escritor e jornalista DOMINGOS PELLEGRINI, d.pellegrini@sercomtel.com.br página 3, caderno FOLHA 2, coluna AOS DOMINGOS PELLEGRINI, 5 e 6 de agosto de 2017, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).
Nenhum comentário:
Postar um comentário