Criar um cotidiano lúdico é o melhor caminho para manter o humor e ter boas ideias
Outro dia deparei-me com um caminhão de entrega de gás totalmente decorado com bichos de pelúcia. Era bicho na cabine, bicho na carroceria e até no retrovisor. Um simpático sapinho ria como quem vive na lagoa, embora estivesse estacionado ao sol do meio-dia numa esquina do centro de Londrina.
Enquanto apreciava ursos, cachorrinhos, gatos e bonecos de olhos arregalados, chegou o motorista vestido com uma roupa colorida e um quepe maneiro, empurrando um desses carrinhos de entrega com o sorriso de quem sabe que sua mania chamou mais uma vez a atenção. Se há uma coisa que me dá prazer é conversar com pessoas desconhecidas desde que eu suponha, por alguns indícios, que elas têm uma boa história para contar.
Ao ver Jiló – soube depois que este é o seu apelido – pressenti que era uma pessoa interessante. Afinal, não é todo dia que um homem que trabalha duro carregando botijões demonstre sensibilidade, colecionando bichinhos que leva a passear pela cidade como seus companheiros de jornada. Perguntei a ele o motivo de ter tantos brinquedos: “É para enfeitar mesmo”. Mas não são para vender? – insisti para dar corda à conversa. “Não, as pessoas sabem que gosto, me dão de presente e eu vou pendurando aí,” respondeu como um condutor de fantasias.
Não sei se a mania tem algo a ver com sua infância e seria muito “psicologismo” supor que Jiló não teve brinquedos. Prefiro achar que ele se sente feliz cultivando um hábito que não faz parte apenas da vida das crianças. Colecionar, seja o que for, faz parte da memória ancestral do homem. Na Pré-História os coletores já frutas e pedras, algumas para uso, outras, acredito, por satisfação. Mais tarde, ferramentas passaram a ter valor para os colecionadores barbudos que levavam para as cavernas tudo o que conseguiam recolher para utilidade ou como um trunfo de seu próprio esforço.
Para quem coleciona, o valor de um objeto é outro. Pode ser uma moeda rara ou um sapatinho de bebê, como ouvi dizer que ocorre com um colecionador de Londrina que anda pelas ruas com um carrinho cheio de botas e chinelinhos que recolhe no lixo para transformar em troféus. Quem me falou desse homem não soube me informar onde posso encontrá-lo. Com sorte, talvez um dia eu me depare com ele e puxe conversa como fiz com Jiló, o entregador de gás que é um doce, transformando sua atividade numa cena divertida, levando às ruas um caminhão enfeitado que alegrou meu dia como se chegasse o circo no bairro, em plena terça-feira, trazendo a alegria de um sapo no retrovisor ou de um urso no para-choque.
No fundo, admiro quem transforma o trabalho numa coisa divertida. A leveza protege nosso espírito dos embates, por isso imagino Jiló voltando para a direção cercado de bichos de pelúcia depois de enfrentar a dona de casa mal-educada do sexto andar ou um motorista nervoso que faz do carro uma espécie de arma.
Bem-aventurado os que fazem de seu cotidiano uma coisa prazerosa. Por isso, vou enfeitar meu computador com chocolates neste inverno porque não existe coisa melhor para aquecer a alma do que desembrulhar um bombom às 15h30 , quando a redação esquenta com a fúria das notícias e quem é sábio adoça a vida em vez de contaminar os colegas com seu mau humor. Bem-aventurados os que “brincam em serviço” porque deles é o reino da alegria e do expediente lúdico. (FONTE: Crônica da escritora e jornalista CÉLIA MUSILLI, celia.musilli@gmail.com caderno FOLHA 2, página 2, coluna CÉLIA MUSILLI, 5 e 6 de agosto de 2017, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).
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