Páginas

domingo, 20 de novembro de 2016

NAS ALTURAS, SEM ASAS


   Tenho ampliado o desejo de ver o mundo de cima, sem vertigens
   Sempre admirei quem trabalha nas alturas, aqui mesmo na Folha pautei reportages sobre pessoas que limpam vidraças de prédios ou trabalham na rede elétrica. Até para fazer as pautas sentia frio na barriga. Comparo esses operários seres etéreos, embora não tenha asas. Fico imaginando como é segurar-se lá em cima, com o mundo a seus pés, e ser colhido de repente por uma rajada de vento ou uma tempestade, duas condições climáticas consideradas verdadeiras inimigas destes alpinistas urbanos.
 Sei que eles são treinados e usam equipamentos de segurança, ainda assim é um desafio fazer de subidas a locais alcançados somente pelos pássaros uma rotina de trabalho. No máximo, subo dois ou três lances de escada quando quero trocar uma lâmpada e procuro não olhar para baixo. Aprendi com os gatos que das alturas é melhor descer de fasto, sem a menor consciência do desafio para não ter vertigens.
   Numa matéria sobre o assunto, vi uma curiosidade nos EUA, as construtoras contratam índios navajos para trabalho muito acima do chão. Por alguma razão, a tribo dos navajos é a única que não sente vertigens em lugares altos. Devem ter aprendido com os gatos ou águias que planam sobre as montanhas. 
   De minha parte, o lugar da natureza mais alto que conheci foi um mirante na Chapada dos Guimarães (MT), não o oficial, mas um daqueles lugares que os aventureiros descobrem praticando a arte do investigar o desconhecido. Na Chapada tudo é grandioso e foi lá de cima que tive a impressão de ver o mundo descortinar-se , numa sucessão de vales e montanhas azuis, encostados ao céu de modo que tudo vira imensidão.
   Tenho uma verve aventureira, o que não significa que que alguma vez tive a coragem de praticar um esporte radical como o alpinismo, no máximo faço caminhadas por locais onde muita gente não se arriscaria, mas também tenho limites. 
   Ultimamente tenho ampliado o desejo de ver o mundo em outra escala. Morando no sexto andar, com um janelão à disposição para exercitar a visão, divirto-me com parte do movimento da cidade por um outro ângulo, daquele de quem vive com os pés no chão. 
   Uma fileira de carros estacionados, com a expressão “Globo golpista” escrita numa das vagas, chamam a atenção. Quem escreveu aquilo tinha noção exata de que ponto de vista queria ser lido. Essa pessoa inverteu a lógica de quem picha nas alturas para pichar o asfalto. Além desta curiosidade, me comprazo em me sentir no plano das árvores mais altas, como a imponente peroba. Da janela, imagino em que ponto do galho estaria se tivesse subido ali como um gato. Não à toa, treino minha gatinha Tattoo para andar de fasto quando ela explora as árvores. Está certo que me limito a chama-la fazendo “psi-psiu”, mas preciso treiná-la antes que, num dia desses, seja necessário chamar os bombeiros para tirar a bichana lá de cima. 
   Da mesma janela vejo pessoas em escala de formigas e imagino insetos sem escala nenhuma. Essa vida de bichos e plantas estimula minha natureza de aventureira urbana que nunca teria talento para amarrar-se a um cinto de segurança, a dez metros, para consertar a rede elétrica. Deixo isso para os fortes, os operários corajosos, os índios navajos, os felinos treinados, as águias que vivem nas alturas. No máximo, registro em vídeo esta ousadia que me deixa tonta só em imaginar o que seria viver a muitos metros do chão. Apesar de “avoada” em muitos momentos ainda não criei asas imaginárias que, acredito, estejam nos corpos destes verdadeiros anjos que consertam postes, limpam vidraças e sobem em andaimes para construir cidades. Peço a Deus que os proteja em cada subida e os traga de volta em segurança enquanto assisto à sua façanha como quem vê um filme na televisão. Mais que isso, comigo não, violão. (Crônica de CÉLIA MUSILLI, celiamusilli@gmail.com páginas 2 e 3, caderno FOLHA 2, 19 e 20 de novembro de 2016, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA). 

Nenhum comentário:

Postar um comentário