Páginas

domingo, 9 de outubro de 2016

PALAVRAS SORE TECIDOS

   A loja de tecidos na esquina da rua Pará sempre chama minha atenção. São peças e mais peças de estampados e lisos, chitas e organzas, algodão ou musseline. Por instantes é como entrar num daqueles bazares de Istambul onde a gente não sabe para onde olha primeiro. Está certo que aqui é apenas uma mercadoria: panos, mas isso não se torna monótono. 
   Tecidos me trazem a nostalgia das funções femininas, mães e tias que costuravam, num tempo em que roupa pronta era novidade e nas casas havia máquinas de costura agulhas, rendas, o bordado inglês que deixava a camisola chique. Havia sofisticação naquele trabalho manual, algo que hoje se encontra em algumas lojas a preço de ouro. Em butiques mineiras e cariocas encontrei roupas em algodão que ainda fazem a festa, mas o capricho hoje custa mais caro do que nossas mães sequer sonhavam.
   Agora, na região de Londrina onde encontro tecidos, os cosméticos especializados concentram lojas de mercadorias única e os derivados que fazem a diferença na cozinha: casas que vendem fogões, panelas e filtros de barro, aqueles que já foram consagrados “como os melhores do mundo” pelos estrangeiros que elogiam sua água fresca. 
   Voltando aos tecidos, tem dias que entro para ver sem querer comprar nada, para mim é uma espécie de playground do consumo, mas sempre encontro vendedoras solícitas. Elas me levam às bancas e mostram o tecido fazendo as contas ‘pela altura’ do pano. Dizem que essa medida é sempre mais econômica, só não sabem que entro ali para me divertir com fantasias da infância: o tule do véu das noivas, as cambraias das roupas de bebê, o xadrez das festas juninas, o cetim do vestido da madrinha. 
   Loja de tecido ainda tem cheiro de guardado ou perfume de tinta fresca que às vezes sai de dentro de uma peça enrolada. Quando as lojas são antigas, assoalhos e escadas dão vontade de deitar e rolar, reminiscência de quando a mãe fazia compras e a gente se divertia com o que surgia pela frente, com direito a entrar por baixo da roupa de um manequim só pelo efeito lúdico. 
   Na minha última visita á loja , vi o tecido da toalha de mesa que lembrava uma festa em família, assim como padronagens simples que lembram o almoço de segunda-feira. Vi seda como a da echarpe da tia Marina, um tecido branco como cortina dos quartos protegidos por venezianas quando não existiam black out nem persianas. Era tudo natural para acordar com a luz e dormir no escuro num abrir e fechar de dobradiças que faziam parte das janelas e do sistema de privacidade. 
   Fazer cortinas era um atributo de mães e avós que alisavam tecidos antes de costurá-los com uma perfeição que estimulava o vento, tudo muito leve e fluido como nossos sonhos. 
   Hoje, procurar tecidos é hábito quase em desuso, mas ainda encontro pessoas que entendem de garbadines para capas de chuva, popeline para vestidos, tricoline para blusas, brins para calças esportivas, uma porção de nomes que as mães davam às coisas ampliando nosso vocabulário com palavras que hoje os adolescentes desconhecem. O mesmo fenômeno acontece para nominar verduras, meus filhos não sabem entre chicória e almeirão, assim como nos supermercados algumas moças do caixa ficam em dúvida sobre o que seria um rabanete, nome que deve soar como ingrediente exótico de uma festa de bruxas. 
   O vocabulário doméstico acompanha os costumes e confesso que meus pais tinham um conhecimento enorme das coisas que soam para meus filhos como peças de um disco-voador. Mas os alienígenas do passado ainda encontram os alienígenas do presente através da língua e, como numa conversa de loucos, se eu falar com meus filhos sobre garbadines, eles retrucam com um “fala sério, mãe”, achando que meu vocabulário merece ser investigado por um detetive ou arqueólogo de expressões paleolíticas. Até por isso, costumo falar com os ETs sobre popelines e uso estampas para camuflar minha fantasia de romper barreiras do tempo no meio das musselines e organzas, tudo em nome da minha paixão por palavras. ( CÉLIA MÚSILLI celiamusilli@gmail.com página 4, coluna CÉLIA MUSILLI, caderno FOLHA 2, 8 e 9 de outubro de 2016, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).

Nenhum comentário:

Postar um comentário