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sábado, 6 de agosto de 2016

A COROAÇÃO


   No meu tempo de criança havia uma tradição muito bonita e devocional da Igreja Católica, existente até nossos dias. Era a coração de Maria no final do mês de maio. Para isso, um grupo de crianças, formados especialmente por meninas, se juntavam, lideradas por uma jovem “filha de Maria” , para ensaiar os cantos e montar a grande festa. A coroação consistia em distribuir graciosamente as crianças em duas escadas laterais, na porta da Igreja Matriz, tendo ao alto, no centro, a imagem de Nossa Senhora que seria homenageada e coroada como Rainha, no último domingo de maio. 
   Os cantos eram muito bonitos, com músicas inocentes e suaves, cujas letras lembravam a criação, homenageando a mãe do criador (sol, lua, estrelas, dia, noite), as virtudes teologais, fé, esperança e caridade, a Bernadete com aventalzinho vermelho e os patorezinhos. Muitos anjos com asinhas recortadas em papelão cobertos com penas brancas ou papel crepom enroladinho. As vestes, em cetim, de acordo com o que a música falava ( o sol, por exemplo, era amarelo), e na cabeça uma coroinha recortada com o símbolo, enfeitada caprichosamente com brocal, glíter e lantejoulas, ou apenas florzinhas brancas. Alguns pais, pagando promessa, vestiam os menorezinhos de anjos e os carregavam no colo. 
   Havia uma certa hierarquia na escolha das meninas para os cantos. O ato de “coroar” a Nossa Senhora era o mais importante. Exigia que a criança cantasse sozinha três lindos e difíceis cantos, e que tivesse uma voz forte e bonita. Numa sequência harmoniosa, em meio a muitas pétalas de rosas, algumas músicas eram cantadas em coro, outras solo, além do coro dos Anjos, do qual todas, inclusive os pequeninos, participavam. Mas o ponto alto mesmo era a “coroação” , ao qual todas as meninas almejavam e esperavam, a cada ano, serem as escolhidas. 
   Num desses anos eu esperava ser escolhida. Já tinha sido o dia, a fé, a lua. Meu sonho era “coroar”. Mas existia uma concorrente, voz poderosa, mais velha que eu, enfim, sem chance. Resolvi encarar e lutar para realizar o meu sonho. E partimos, literalmente para a luta, ou melhor, disputamos nos tapas. Rolamos no chão, no maior barraco, entre unhadas, puxões de cabelo (ela tinha um cabelão) e tapas. A “filha de Maria” que nos ensaiava separou a briga e pregou o maior sermão. Chorei muito, não pela briga, nem pelos machucados. O que doía e humilhava mesmo era perder para alguém que tinha um vozeirão e mais fama de cantora do que eu. E mais forte também.
   A tristeza foi tão grande que nunca mais quis participar da coração. Ainda hoje lembro as letras dos cantos decorados e repetidos centenas de vezes, lamentando minha voz pequena demais para entoar, sem a ajuda do microfone, aquele canto lindo que ecoava por todo o largo da igreja, apinhado de gente, no frio do final de maio. “ Salve, Glória de Israel...! De toda a criação, és a mais bela criatura...”. (ESTELA MARIA FREDERICO FERREIRA, leitora da FOLHA, página 2, coluna DEDO DE PROSA, FOLHA RURAL, sábado, 6 de agosto de 2016, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).

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