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domingo, 12 de junho de 2016

O ESPÍRITO DAS COISAS




   Portas que rangem, paredes que estalam, um abajur que se acende sozinho. Se você pensou em assombração pode estar certo ou completamente errado. De minha parte, acredito que as coisas conversam com a gente, querem ter intimidade e articulam uma linguagem própria, como quem quer ser entendido falando do jeito que sabe.
   Digo isso por causa das coisas que andam conversando comigo. Na verdade, estalos de um aparelho de ar condicionado que neste frio parece que está exigindo uso. É como se ele perguntasse: “Não vai me usar? Vai me deixar desligado o ano inteiro como se eu fosse sem utilidade?” O velho aparelho está revoltado e eu vou lhe dar toda a razão, se não servir para esquentar pessoas e ambientes no inverno estará condenado a ser um artifício do verão e tenho pra mim que ele quer se manter vivo em todas as estações.
   No fundo, acredito que as coisas tenham espírito. Uma alminha mecânica ou orgânica que se manifesta criando uma linguagem de ruídos e estalos que nem sempre representam um ser do outro mundo ou uma assombração em nosso quarto. O que pode ter mais intimidade com a gente que a nossa própria cama, onde todas as noites deitamos nosso corpo cansado e centenas de pensamentos no travesseiro? Lá ficam nossas emoções, das mais bonitas – como o amor – às mais feias, como a inveja e a raiva. Vai ver que essas emoções se ligam aos lençóis, à madeira do criado-mudo que, mais dia menos dia, deixa de ser mudo e começa a devolver pra gente tudo o que depositamos nele, de livros a empurrões. Portanto, cuidado com seus pensamentos, você pode estar ensinando sua cama a ser inquieta e daí à insônia é um passo.
   E os armários, então? Quantas coisas eles guardam. Desde casacos perfumados no inverno passado a camisetas floridas que formam uma primavera particular, portanto, converse om a primavera de vez em quando e troque cabides de lugar porque eles também se cansam dos “vizinhos”. Neste sentido, tenho a impressão que um dos meus cintos detesta a saia de patchwork que lhe confunde a “visão” , deixa seu olhar estrábico e, por isso, ele escorrega do armário toda vez que abro a porta. Por isso, decidi enrolá-lo como uma cobra solitária e deixa-lo num canto, parece que ele gostou porque nunca se manifestou. 
   As coisas dizem quando não suportam um determinado espaço. Panelas que caem dos armários, meias que desaparecem, telefones que nunca desligam – embora a gente aperte a tecla correta – são “coisas” falando com a gente. Já abajur que acende sozinho merece atenção especial: ou é nossa consciência se iluminando ou é um fantasma mesmo que vem conversar na sua linguagem de sinais. Claro que prefiro considerar a primeira possibilidade. 
   Quando não sabemos nomear ou identificar um fenômeno dizemos: “aconteceu uma coisa”. Porque coisa serve para tudo, nos dicionários Houaiss e Aurélio o verbete se aplica a mais de quarenta significados: podemos dizer “que coisa feia” ou “coisa do outro mundo.” Por isso tomei a palavra emprestada para dar sentido a tudo que estala no meu quarto fora de hora.
   Os assombrados sempre vaticinam: “é um fantasma.” As pessoas que aliviam nossa barra ou também morrem de medo da “coisa” dizem: “não é nada, não.” Embora o nada se manifeste sempre de madrugada. Prefiro apostar no “espírito das coisas” que também pode ser meu pensamento animando objetos inanimados. Porque nosso pensamento voa. É um tipo de viajante que nos devolve aos medos da infância ou cruz o oceano indo parar na América. Neste caso, podemos até ouvir a voz de Frank Sinatra saindo de um velho rádio cantando “New York, New York” sem que ninguém o tenha ligado. Mas se isso acontecer às quatro da madrugada saio gritando. Para mim bastam uns estalinhos que não se parecem com nada e posso classificar como o tipo de “coisa” que é melhor deixar para lá. (Crônica da jornalista e escritora Célia Musilli, página 4, caderno FOLHA 2, espaço coluna CÉLIA MUSILLI, domingo, 12 de junho de 2016, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).

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