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quarta-feira, 4 de maio de 2016

O DOM DO ALIMENTO


   Adoro ir na Vega (mercadão) coma minha filha comprar as nossas verduras e frutas e almoçar. É um ritual gostoso de cada quinta-feira que, fora isto, me dispensa de cozinhar e lavar louça. Não só gosto porque é barato, a qualidade excelente e a comida fresca e deliciosa, mas porque me encontro com toda essa gente trabalhadora e esforçada, sempre de bom humor, que é o melhor retrato dos chilenos. 
   Gosto especialmente quando chegamos ao nosso restaurante favorito (um dos mais populares, que só serve comida típica chilena) com as suas mesas manchadas e meio escorregadias, seus talheres meio tortos e suas cadeiras avulsas e pouco confortáveis, e nos vemos rodeados por outros clientes – velhos ou novos, turistas, garis e trabalhadores do próprio mercadão – e pelos deliciosos e tentadores aromas que escapam da cozinha. 
   Todos falam e riem, fazem piadas, se cumprimentam, correm daqui para lá carregando pratos de cazuela, estofado, peixe frito, feijão com macarrão, pão, pebre (molho feito de tomate, cebola, coentro e pimenta) refrigerante... É um clima barulhento e feliz, atarefado, humilde, porém limpo e acolhedor, e adoro ver essas pessoas comendo, porque o fazem com vontade, com prazer, sem frescuras. Enchem a boca e mastigam com satisfação, com gratidão, sentindo que a sua fome – quem sabe de muito mais que de comida – vai sendo saciada, colherada a colherada. O corpo e a alma se aquecem, acordam, agradecem. O prato, mais do que generoso, parece envolvê-los com seus aromas pátrios e fumegantes, com o carinho e experiência de quem os cozinhou. 
   Eu olho para essa gente e sinto o sagrado desse ritual, mesmo que eles não percebam, é o dom do alimento toma conta de mim com todos seus significados. Todos comemos juntos, numa mesma mesa, feito uma imensa família, e cada bocado nos aproxima mais, nos iguala, alimenta os nossos sonhos, a nossa fé, a nossa coragem. ( PAZ ALDUNATE, professora, escritora e artista plástica em Santiago (Chile), página 3, caderno FOLHA 2, quarta-feira, 4 de maio de 2016, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA.

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