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domingo, 22 de maio de 2016

ARTE NO LUGAR DE APARTHEID


   A semana que passou foi dedicada à Luta Antimanicomial, movimento que transformou a visão sobre o modo de tratar os psicóticos. Por ter uma pesquisa sobre a obra de Maura Lopes Cançado, escritora mineira que era também psicótica, fui convidada a fazer uma palestra em Belo Horizonte e me deparei com uma plateia diversificada – estudantes, professores, atores e psicanalistas, entre outros – com um interesse em comum: a relação entre arte e loucura.
   No momento, um filme sobre o trabalho da médica Nise da Silveira – O Coração da Loucura  – está em cartaz e desperta interesse sobre a psicanalista que revolucionou o tratamento dado aos psicóticos com a arte terapia nos anos 50. Maura Lopes Cançado foi contemporânea deste trabalho no complexo do Engenho de Dentro, no Rio, onde também ficou internada, ela fala sobre isso no livro Hospício é Deus. Tenho uma coleção de fotos com telas de ex-pacientes da doutora Nise que fundou também o Museu do Inconsciente, um acervo que reúne pintura de artistas que sofriam de doença mental. Imagens comuns, captadas no mundo real, ou distorcidas conforme as emoções desses artistas singulares. 
   Na palestra que dei em BH, entre muitas perguntas interessantes da plateia surgiu uma sobre a opinião das pessoas “normais” em relação às pessoas loucas enquanto estão vivas e depois que morrem. Perguntaram-me se eu achava que muitos os que hoje são considerados artistas não integram apenas “museu” de memórias, tendo em vista que em vida eram poucos valorizados. Nesta categoria, encontram-se não só os loucos, mas os outsiders, os alcoólatras, enfim uma galeria de banidos cujo trabalho só adquire valor depois da morte. Não tenho dúvidas que os vivos incomodam bem menos que os mortos. E que a mesma sociedade que encarcerou Van Gogh, Lautróamont, Artaud, Maura Lopes Cançado e Arthur Bispo do Rosário em hospícios, hoje celebra sua arte e até mesmo ganha fortunas com trabalhos que expressam grande sofrimento. 
   De qualquer forma, acho que esses artistas e escritores nunca serão parte de um “museu”, porque deles emana uma vitalidade que transcende o tempo e eles se mantêm vivos. Só lamento que ao depararmos com talentos assim ainda tenhamos a conduta de manter a devida distância de quem não corresponde aos padrões considerados “normais”. E o que é normalidade se não outro tipo de prisão que nos faz obedecer as regras, trabalhar religiosamente oito horas por dia às vezes por obrigação, sem prazer, deixando nossa vida se perder em costumes que não acrescentam nada a não ser a repetição? Há espaço para a criatividade em nosso cotidiano? O certo é que sempre optamos por um padrão demasiadamente comum que nos afaste da loucura de ousar, ainda que isso signifique muito pouco. 
   Vocês já escolheram um caminho novo para chegar ao trabalho? Já pensaram em mudar de setor, se fantasiar por mera brincadeira, pintar um quadro ainda que lhes pareça feio”? O ser humano é pródigo em criar conflitos e se esconder deles, a ponto desse jogo nos lançar no limite da loucura. Tudo faz parte de uma relação que coloca os loucos de um lado e os normais de outro. Mas na verdade, todo mundo sabe que a sociedade é regida por seus próprios conflitos, que também resultam em neuroses disfarçadas em competitividade, medo da concorrência, exclusão de colegas que obtém um resultado melhor no trabalho. 
   Há milênios a sociedade busca um lugar para colocar seus loucos e há bem pouco tempo no Brasil eles se livraram do apartheid do manicômio. Compreendê-los em vez de transformá-los em “doidos de estimação” depois que morrem, é um passo em direção ao conhecimento de tudo o que cabe na mente, derivando para tratamentos melhores ou piores de acordo com nossa compreensão do “potencial da loucura”. Foi isso que fez a doutora Nise da Silveira quando tratou seus pacientes com arte em vez de exclusão. Coisas a se pensar em relação aos loucos e diferentes. (FONTE: celia.musilli.@gmail.com página 4, caderno FOLHA 2, espaço CÉLIA MUSSILI, domingo. 22 de maio de 2016, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).

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