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domingo, 3 de abril de 2016

O BRASIL PRECISA DE PSICANÁLISE


   Neuroticamente, o país está repetindo comportamentos que atrofiam pensamentos e saídas

   Em 1929, ao escrever o ensaio “O Mal Estar da Cultura”. Freud já alertava que os sintomas sociais são históricos e mudam com o tempo. No meio da crise política brasileira, noto que entre os sintomas existe um modo recorrente de uns jogarem pedras nos outros, mais preocupados em praticar a teimosia e estabelecer “quem tem razão” do que propriamente encontrar saídas. 
   Corremos o risco de, ao fim da crise, sentirmos um vazio por não saber mais o que fazer com as pedras que levamos não só no bolso como no coração. A contrariedade hoje é um estado de alma dos brasileiros, tem a ver não só com a realidade mas também com as fantasias ideológicas que nos dizem respeito a partir do que entendemos por esquerda ou direita, ainda que esses campos, na prática, se confundem cada vez mais. Lideranças políticas – se é que assim podemos chamá-las – pulam constantemente de um partido a outro, dão e retiram apoios tendo em vista o que importa mesmo a uma classe de mercadores: o poder. 
   Mais do que os políticos o que me interessa é a população e tenho visto uma eclosão de traumas que se serve do cenário político mas se relaciona com a história de cada um, ricos ou pobres, negros ou brancos, religiosos ou ateus. Há um caldo cultural que neste momento escorre e embaça o espelho da política onde projetamos desejos conhecidos e desconhecidos. 
   Minha impressão é que o Brasil precisa de um divã. Ninguém mais se entende, formaram-se dois blocos completamente arredios, avessos a qualquer entendimento e isso foi fomentado pelos governantes que instrumentalizaram politicamente as diferenças até criar um surto. Se o separatismo e o preconceito de classes foram recalques que vieram à tona para serem expurgados, a supuração dos preconceitos latentes da cultura transformou-se numa ferida aberta, de difícil cura. Minha impressão é que estamos longe de resolver o trauma, ainda estamos na fase em que isso eclode à custa de muita agressividade e se existe um limbo cultural onde a raiva floresce como uma planta tóxica é a rede social. 
   Muitos tentam esconder a raiva num formato de paz e amor de pouca duração quando se arrependem das palavras, mas há um ódio que permeia e substitui imediatamente qualquer possibilidade de entendimento tão logo as partes sejam minimamente contrariadas, tudo converge para expressões pesadas, bordões e um glossário de ofensas. Não é preciso repetir, mas para que fique claro: coxinha, petralha, fascista, misógino, fundamentalista, sectário e outros tratamentos estão na linguagem comum. 
   A herança horrível destes tempos vai demorar muito para ser eliminada dando lugar a uma cultura mais afetiva. Mesmo as tentativas de fazer brincadeiras de modo a tornar as coisas mais leves logo levantam uma nuvem de acusações. Cansei de fazer essas experiências, substituindo o textão e o discurso por algo simbólico que implique em alguma leveza, cumprindo o papel do chiste na psicanálise, mas hoje a agressividade impregna o cotidiano. 
   Nas redes tudo se transformou num jogo de dardos em que cada um quer atingir seu alvo. A tragédia é criarem-se relações belicosas como as dos casais em crise que não se suportam, mas ficam juntos até a dizimação, o desgaste sem volta, extermínio mútuo. 
   A impressão é que as pessoas acostumaram-se às suas guerras particulares de modo que, quando isso acabar, pode sobrar o vazio onde faltou a reflexão que está muito além das pedradas. Estamos carregando para o campo político nossos recalques pessoais, o resultado é a agressividade onde deveriam germinar ideias construtivas. No fim das contas, somos todos brasileiros e, em campos opostos, queremos coisas parecidas, as forças não podem acabar num cabo de guerra. Isso só serve aos políticos e à manipulação das vontades, mas não constrói um país, é preciso tomar cuidado para não ser atraído pelo canto das sereias ou pelos malabarismos dos tubarões. O Brasil está precisando de psicanálise, sob pena de repetir neuroticamente atitudes que atrofiam pensamentos e saídas. ( FONTE: celiamusilli@gmil.com caderno FOLHA 2, espaço coluna CÉLIA MUSILLI, domingo, 3 de abril de 2016, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).

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