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segunda-feira, 15 de junho de 2015

DOCE SALGADO



   Vocação é um chamado intuitivo.  Sebastião  Salgado  soube responder à altura do vocativo: ele se transformou em um dos maiores fotógrafos sociais de nosso tempo. Sua obra, já amplamente conhecida, pode (e deve) ser apreciada no instigante filme O Sal da Terra: uma viagem com Sebastião Salgado,  documentário concebido a quatro mãos pelo aclamado diretor Wim Wenders e pelo filho de Tião, Juliano Ribeiro Salgado. Não se trata de mais uma biografia de um profissional reconhecido e consagrado  internacionalmente. A bem da verdade, as quase duas horas de narrativa consubstanciam-se como um relato sobre a dignidade da pessoa humana.
   Os retratos feitos  por Salgado eternizam momentos sublimes, mas muitos deles repletos de dor, de sofrimento e de morte. Entretanto, curiosamente, mesmo no registro de casos-limite, o belo ali está. Sim, a beleza retratada por Salgado, apesar de resplandecente, também é desconcertante e incomoda, e as imagens entremeadas com depoimentos sobre crimes perpetrados contra a humanidade nos deixam perplexos: como esse genocídio pode, ainda, continuar a acontecer em nossos dias? De onde vieram as forças, físicas e emocionais, do fotógrafo para captar a mais completa ausência de tratamento digno para com nossos semelhantes?
   Em certa altura do documentário, o artista diz saber que devia estar onde estava, mas que sentia a alma doente com o que testemunhava. A vocação de Sebastião o levou a lugares inóspitos, dando a ele a oportunidade de viver  ao lado de seres humanos em seus derradeiros momentos. Esses seres humanos, em sua esmagadora maioria, sem nomes, sem roupas, sem casa, sem lugar no mundo, cujas vidas não foram valorizadas, tiveram a oportunidade ímpar de encontrar a câmera de Salgado. Talvez, para muitos  deles, o único lampejo de dignidade sobre si tenha sido disparado pela câmera desse sujeito doce e inspirador.
   Os diferentes projetos que protagonizou  ao longo de uma carreira brilhante, com o fiel e acurado apoio de sua esposa, Lélia Wanick Salgado, reverdecem hoje na forma da Mata Atlântica recuperada na fazenda da família, com a criação do Instituto Terra, numa área degradada pelo manejo predatório, muito comum em nossos dias.
   Não é possível sair da sala de cinema indiferente à humanidade, muito menos sem ter o coração tocado pela doçura desse homem tão singular, que soube se comunicar com uma plateia  plural  por meio de seu trabalho fotográfico, agora ladeado por árvores, frutos, flores e água limpa. Temos aí um grande exemplo de ser humano. ( Texto escrito por OTÁVIO GOES DE ANDRADE, professor do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da Universidade Estadual de Londrina, página 2, espaço PONTO DE VISTA, publicação do JORNAL DE LONDRINA, domingo, 14 de junho de 2015).  

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