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domingo, 8 de fevereiro de 2015

PLANETA ÁGUA



              Numa das piores secas do Brasil, descobri os ritmos da chuva
     Outro dia ouvindo a chuva, que há muito não caía , percebi que ela tinha alma de blues. Chuva  assim dura mais tempo, toca noite inteira na janela,rega as plantas, molha a terra, entra pelas raízes, forma rios. Só quando o Brasil ficou sem chuva, começou a entender a chuva. Viu que as úteis são diferentes do pancadão, que lembra o funk, que faz muito barulho, perturba os moradores e vai sem deixar nada de bom, além de pessoas fulminadas por  raios e telhas partidas. O Brasil anda numa fase terrível de descarrego do clima  e descarrego da  música.
     Cada chuva tem um ritmo, gosto de todas, mas as blueseiras, as sinfônicas, as bossas-novísticas são melhores, se entregam de corpo e alma ao que fazem, levantam e abaixam poeira, inundam o chão.
     Ultimamente só se fala em crise hídrica, em crise de abastecimento, em rios secando. As autoridades medem os canos, quilômetros de furos e incapacidade administrativa, desperdício no campo e na cidade, desmatamentos, o país cada vez mais com cara de poço sem fundo, não bastasse o petróleo, que é bom nem colocar nessa conversa que é para não aprofundar mais ainda o cismo, a cizânia, o bate-boca entre os monarquistas e os inconfidentes.
     Então, pensando na água e só na água, lembrei de músicas que homenageiam o H20, essa matéria-prima da vida, este elemento líquido que lava nossos corpos, cozinha nosso alimento, apaga o fogo quando necessário.
     O país que detém 12% da água doce do planeta foi pego numa crise que transformou muitos governos em curvas de rio, da esfera estadual à federal ninguém se salva. Quem confia num administrador que não sabe se a caixa d’água de seu estado está cheia ou vazia? Quem confia num administrador que não sabe o quanto tem em caixa e, quando a embarcação faz água, empurra o prejuízo para os bolsos do povo? Lembraram-se  de alguns nomes? Ótimo. Assim não preciso identificar o que está na cara: vivemos a maior crise de administração política do Brasil. A incompetência veio à tona com os rios secos, governos movidos à vela e sem a energia do vento.
     Mas voltemos  à musicalidade da chuva, `marchinha de carnaval de  Marinósio  Filho, compositor que viveu durante décadas em Londrina e ensinava: “Você pensa que cachaça é água? Cachaça não é água não”. Se vivesse hoje, o velho Marinósio teria que repensar essa  letra, água se transformou em artigo de luxo , em SP vendem-se garrafinhas a R$ 7 reais e já não se bebe  tanto ultimamente. Já vi quem diminuiu a água para copinhos de dois dedos, copinhos de cachaça, economia  de guerra em tempo de escassez.
     Bons tempos aquele do lirismo de Guilherme Arantes em Planeta Água: “Água que nasce na fonte serena do mundo/E que abre um profundo grotão/Água que faz inocente riacho/E  deságua na corrente do ribeirão”.
     Ou a belíssima Águas de Março de Tom Jobim, compositor que sabia tudo da Floresta da Tijuca quando se falava pouco em meio ambiente, mas não havia sombra de pessoas nefastas  querendo invadir fundos de vale: “È o vento ventando, é o fim da ladeira/É a viga, é o vão, festa da cumieira/ É a chuva chovendo , é conversa ribeira/Das águas de março, é o fim da canseira”.
     Água, água, água. Em seu nome deixo um poema oração. Livrai-nos da seca. Não nos deixe na mão. Que os deuses da chuva criem os blues que toca a noite inteira em meus ouvidos, deixo  a letra:
     “Água, orgasmo da terra, saliva, fluido, fluxo, poema. Sereia de prata, espelho de Oxum, a languidez  de um substantivo feminino. Água, a dança da gestação. Minha atração pelo profundo que corre se não como linfa, ninfa. Mãe da umidade entre as coxas, do sexo ao mar, livrai-nos da secura sem erotismo e da ciência sem H20. Amém” ( Texto da escritora CÉLIA MUSILLI  
celiamusilli@terra.com.br  pág 4, publicação do  jornal  FOLHA DE LONDRINA, domingo, 8 de fevereiro de 2015).

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