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domingo, 9 de setembro de 2018

UM CARROSSEL DE MEMÓRIAS


   Um conto e uma imagem me levaram de volta a circunstâncias que pareciam perdidas 

   Um livro de crônicas de Marco Aurélio Cremasco – “Onde se Amarra a Terra Vermelha! – me despertou lembranças. Bastou ler as primeiras linhas de um conto e me veio à memória a cidade natal: Cornélio Procópio ensolarada, onde desponta um Cristo Redentor na avenida que é seu ponto mais alto. Cornélio Procópio barrenta na época das chuvas, quando percorríamos a estradinha de lama atrás do morro do Cristo, escondidos dos pais que não queriam “nem saber de crianças perto da pedreira.”
   Os perigos na infância são tão sutis quanto podem ser trágicos. Mas vendo hoje uma infância que se expõe a riscos maiores, não os físicos, mas os mentais, com games violentos que se tornaram tão corriqueiros quanto tomar refrigerante, penso que os perigos da minha infância – esses de exposição à natureza , morros, pedras e água dos córregos – não eram nada e chegam a parecer ingênuos. 
   As lembranças doces sempre se sobrepõem à dor, coisa a se pensar a cada vez que nos sentimos tristes, arrasados por algumas circunstâncias que não podemos mudar. Esta semana, por duas vezes, depare-me com lembranças doces da minha cidade natal. Essa que descrevi que voltaram à memória pelos contos delicados de Cremasco. A outra veio pela postagem de um fotografia antiga de pessoas que foram as mais importantes da minha infância, além de meus pais e irmãos. 
   A família Alcântara era nossa vizinha, com ela passávamos tanto tempo que nos tornamos parentes, aqueles que elegemos por afinidade, não por laços de parentescos de fato. Vejo Seu José e Dona Sofia, o filho Pedro e sua irmã Lurdinha, com os filhos ainda pequenos. Uma fotografia que me levou de volta àquilo que julgamos perdido. Uma imagem congelada no tempo quando tudo era tão simples quanto abrir uma janela e se deparar com nossa “outra família”, suas risadas, dona Sofia eternamente iluminada com seu nome que significa “sabedoria”. 
   Foi com paciência e sabedoria que ela se expressou a vida inteira, cativando seus filhos e toda a criançada da rua com a bondade que tem as mães que sabem fazer bolo de milho e nos dar espigas cozidas. Já Seu José foi a pessoa da qual guardo memórias que se parecem com meus fiscos de vinil. Ele era dono de uma loja de produtos eletrônicos quando vitrolas e televisores ainda eram novidades Na sua casa, havia sempre um disco tocando, Nelson Gonçalves soltando a voz de encher o quarteirão, quando era o dono da casa que se punha a ouvir música. Mas havia os filhos que ouviam rock e convergíamos para a sala de visitas da família, crianças e adolescentes imitando passos e trejeitos de ídolos que pareciam até indecentes, mas eram pura liberdade expressada em requebros e movimentos de pernas e braços. Assim cresci ouvindo rock, mas sem desconhecer as serestas que fizeram parte da vida dos meus pais e da vida do Seu José e Dona Sofia. 
   Até que se mudou para a rua a família Arrebola, bem mais tarde, e seu Chico cantava tão bem quanto Nelson Gonçalves, além de ter a paciência de enfileirar as crianças para simular programas de calouros, assim nos desinibíamos e melhorávamos nossa autoestima. Ganhei alguns prêmios ali com minha voz infantil de soprano, imitando os agudos de Gal Costa e Elis Regina. Mais que isso, ganhei a segurança de poder me apresentar a um pequeno público de crianças e cachorros. 
   A leitura de um conto e a visão de uma fotografia são modos de voltar no tempo. Mais que qualquer ficção científica, mais que os filmes nos quais víamos a máquina de teletransportar personagens que embarcavam para se materializar em outra época, em outra vida. Tive essa impressão quando um conto e uma imagem me levaram de volta a circunstâncias que pareciam perdidas, mas que estão dentro d mim com a nitidez das coisas que nunca terminam. São as memórias tão intangíveis quanto eternas. A visão do que fomos e ainda somos porque o tempo é circular, um carrossel no qual os cavalinhos e as crianças se vão mas sempre retornam. (Crônica escrita por CÉLIA MUSILLI, celia.musilli@gmail.com jornalista e escritora em Londrina, página 2, coluna CÉLIA MUSILLI, caderno Folha 2, 8 e 9 de setembro de 2018, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).

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