Páginas

domingo, 8 de julho de 2018

PELO OLHAR DE UM VELHO


   Se eu fosse tratar poeticamente a velhice começaria pelos olhos. O olhar dos velhos sempre me paralisa, como se trouxesse o passado sem perspectiva do futuro. É como se o tempo parasse. 
   Outro dia vi um velho japonês numa galeria, senti uma dor respeitosa ao vê-lo absorto na porta da lanchonete como se procurasse um endereço invisível. A postura era de extrema fragilidade, trazia um papel dobrado olhava para ele sem encontrar referência, nenhuma conexão. 
   O olhar daquele velho me doeu, mas a minha dor era um bom sinal, apesar de tudo ainda não caí na indiferença. Até por isso, vejo velhos e jovens nas ruas e seus comportamentos. Dói quando vejo uma mulher, nos seus 80 anos, carregando uma sacola de compras, sem um filho, um neto, sem alguém que possa lhe tirar o peso das mãos e da vida. Dói quando vejo a extrema dificuldade de um idoso ao atravessar as ruas, sem ter a confiança absoluta de que o semáforo não vai abrir de repente. Dói quando vejo velhos que já não se movem, sentados em cadeiras de rodas no Calçadão, amparados por um cuidador que pacientemente movimenta as rodas como se girasse o passado e o futuro. 
   A dor, na verdade, enternece. Dá vontade de acolher a fragilidade e transformá-la na alegria de saber como é a vida dessas pessoas. Os velhos têm histórias incríveis, passados de dança de salão e de quermesse, de famílias reunidas para mais um aniversário, mais um Natal vencendo o tempo implacável que não para e vai engolindo as pequenas e grandes aventuras. 
   Gosto também de ver fotografias e observar no velho de hoje o jovem que escalou montanhas, dirigiu sem carteira de motorista, ralou o milho para fazer a comida das festas, colheu café como quem colhe a alvorada de sonhos e passarinhos no quintal que o tempo engole. Velhice para mim, além da dor, é um pomar de jabuticabeiras, as folhas derrubadas no outono, um espelho antigo, uma cadeira de balanço, uma cristaleira que guarda copos que ninguém usa, um garfo torto que venceu as décadas indo à boca daquele dono desdentado que ainda assim abre um sorriso. 
   Velhice para mim são os netos perfilados na fotografia com o avô, um bilhete esquecido num livro, a caderneta de contas a pagar, o livro de receitas, os óculos guardados no baú empoeirado do dono que já se foi. Velhice para mim é um relógio de parede, um chinelo desgastado, um cão que ainda procura o dono, a casa caiada, o muro despencando sem que ninguém mais lhe ponha um arrimo. 
   Velhice é ainda um abraço com cheiro de lavanda, um batom ressecado, um cartão-postal de Poços de Caldas, a torre das igrejas, o livro de missa, o rosário dependurado na cabeceira da cama. 
   Velhice é uma lembrança terna que me paralisa, que me assombra a cada vez que encontro um olhar perdido que escoa como um rio que ninguém sabe para onde vai, um Lete de memórias consumidas, um barqueiro fazendo a transição entre a vida e a morte. Velhice, sobretudo, é um olhar que me chama a atenção nas portas de uma galeria, sem saber se segue à direita ou à esquerda, sem poder conferir os números num papelzinho dobrado para servir de referência a algum porto seguro da realidade. 
   Velhice é um marco que me incomoda e me faz cair em abstrações que me mostram que ainda não sou indiferente às coisas do mundo, à passagem da vida que se desenrola no meu olhar atento, sabendo que no fundo também cairei num vazio que embaça a vista. Até lá, leio e escrevo poemas para dedicá-los aos velhos. E, evocando a sabedoria, por fim me lembro de Cecília Meireles que traz a síntese da emoção diante da fragilidade; “Já não se morre de velhice/nem de acidente nem de doença/ mas, Senhor, só de indiferença.” (FONTE: Texto escrito por Célia Musilli, publicado na edição do dia 2 de setembro de 2017 – A jornalista Célia Musilli está de férias, caderno FOLHA 2, página 2, 7 e 8 de julho de 2018, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).

Nenhum comentário:

Postar um comentário