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sábado, 22 de julho de 2017

ONDE ESTÁ A CONFIANÇA?


   Abra as páginas de um dicionário qualquer e busque pelo vocábulo confiança. Estará lá algo como crédito, boa fé, segurança, bom conceito et. Mantenha a página aberta e facilmente encontrará o verbo confiar, ter fé, ter confiança, ter esperança em alguém ou algo. Respire um tanto aliviado. Ufa! A confiança ainda existe, pelo menos ali.
   Quando eu era criança, numa cidade dessas qualquer do interior do Brasil, a confiança era uma moeda de troca muito em uso. Havia quem confiava a chave de casa à vizinha. Pais confiavam a educação formal de seus filhos e filhas a professores e escolas – a maioria delas pública, aliás. O cidadão estacionava a bicicleta na porta de uma lanchonete, enquanto lanchava, de um banco enquanto depositava dinheiro ou pagava contas, confiando que ninguém, a não ser o próprio, sairia dali montado nela. Exceções existiam, mas, em linhas gerais, confiava-se muito mais em tudo e em todos.
   “Você precisava ver na nossa época”, rivalizam os parentes mais velhos. Comprava-se fiado em mercearias e a caderneta de anotações, que precedeu em muito o cartão de crédito, valia como palavra de honra. Palavra de honra, aliás, tinha serventia mesmo. Falou, estava falado. Os contratos sociais invisíveis que as pessoas teciam todos os dias entre si eram assinados pelo tinteiro do compromisso. Ninguém vinha pedir ao pai a mão da filha em casamento sem a intenção verdadeira de casar-se. As exceções aqui eram quase invisíveis a olho nu. 
   Não dá para saber, exatamente, em que ponto a sociedade foi perdendo isso. Porém, as variáveis coletivo e individual estão de alguma forma colocadas a núcleo desse contexto. A coletividade favorece a necessidade de confiar. ´Quando se raciocina em torno de um bem comum para uma comunidade, uma instituição, uma empresa, por exemplo, é quase obrigatório trafegar pela via da confiança. Via de mão dupla: é preciso confiar e ser confiado. É nessa circunstância que ela se avoluma. O individualismo, por outro lado, com processo de pensar demasiado em si próprio e em ganhos que se estendem, no máximo, a um grupo restrito, faz com que as pessoas passem a confiar cada vez menos umas nas outras e a se trair mutuamente -, pois, via de regra, quase todas estão dispostas a obter vantagens sobre as demais quando o crescimento isolado é celebrado como virtude máxima. 
   Já não se conhece o vizinho pelo nome, às vezes, sequer pela fisionomia. E o pior de tudo: não se deseja conhecer. Pais estão cada vez mais desconfiados das escolas dos filhos; escolas estão cada vez mais desconfiadas dos pais. As relações sociais cada vez mais judicializadas Bicicletas sem cadeados são inconcebíveis, mesmo no próprio bairro. Demonstrar confiança nas urnas? Nem pensar. Eleição e confiança caminham em perfeita desarmonia. Elege-se o “menos pior”. Minguam-se as exceções, quase tudo isso é regra. 
   Não tem jeito: Ou se dá um sentido mais coletivo às aspirações humanas ou será preciso fuçar o velho dicionário toda vez que for necessário acreditar que a confiança existe – e correndo o risco de – ao fechar as páginas, imediatamente, voltar a desconfiar da própria sombra. (FONTE: ISOLDA HERCULANO, escritora e jornalista em Londrina, página 2, coluna ESPAÇO ABERTO, 24 e 25 de julho de 2017, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA). * Os artigos devem conter dados do autor e ter no máximo 3.00 caracteres e no mínimo 1.500 caracteres. Os artigos publicados não refletem necessariamente a opinião do jornal. E-mail jornaldelondrina.com.br

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