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domingo, 9 de julho de 2017

A CENA DO CAVALINHO BRANCO

 

   Os desejos da infância têm a força da vontade mais firme
   Li uma crônica de Fabrício Carpinejar na qual ele fala dos desejos da infância que não se realizam, dos sonhos insatisfeitos, no modo como às vezes os pais confundem os pedidos das crias, dando a um filho o que o outro queria. Senti um aperto no coração quando ele descreve uma cena na praia, onde havia um cavalinho que era alugado para as crianças. Durante meses, ele ficou sonhando com o passeio, enquanto todos nadavam, brincavam, catavam conchas, ele pregava o olho nas dunas, à espera do pônei. Um dia pediu ao pai o passeio, que confundiu os desejos dos filhos e pagou a montaria para o irmão caçula. 
   Sei que soa anacrônico os desejos e as frustrações da infância, que os anos passam e muitas coisas perdem o sentido. Engolido pelo tempo, o trauma arrefece, surgem novas expectativas e ai de quem fica olhando o espelho retrovisor. Mas desejos da infância tem a força da vontade mais firme, menos contaminada pelas desistências que acumulamos ao longo da vida, a  ponto de um dia não ter mais importância somar o que conseguimos ou reduzir o que não está ao nosso alcance. Só que nesta desistência perdemos também os sonhos. 
   Na infância é como se o anjo da esperança sussurrasse de hora em hora em nossos ouvidos: “É possível.” E mais tarde viesse o anjo da consolação para dizer: “Não dá, mas aguente firme”. Ele diz de um jeito tão renitente que acreditamos, porque são tantos os “nãos” que um dia nem tentamos mais. Deixamos os sonhos virarem delírios quando percebemos que só podemos ter algumas coisas de um modo muito particular, ancoradas no imaginário. Há nisso um paradoxo, uma contradição insolúvel. Mas dizem que um adulto equilibrado é aquele que aprende a lidar com as “nãos”, mesmo sabendo que o descontrole é muito mais sincero. 
   Um dia descobrimos que nem todos os planos serão realizados, que os presentes escapam, que a confiança em alguém que pode nos proporcionar uma coisa simples – como um passeio a cavalo – acaba na cena protagonizada por outra pessoa, às vezes alguém próximo, como um irmão que amamos, mas que ficou com nosso sonho. Os pais às vezes não prestam atenção nos filhos. A falta de tempo os engole, a falta de concentração nas coisas simples que pode deixar feridas que se fecham, mas de vez em quando pulsa em seu anacronismo.
   O passado frustrado de Carpinejar decerto hoje não lhe tira o sono nem revira suas entranhas. Mas ficou ali, como a bolha de sabão que explodiu antes da hora, a bola que foi parar nos pés de outro menino, a ilusão que se dissipou na cena trocada. 
   Entre sonho e realidade há sempre um hiato, um espaço que testa nossa sensibilidade e perdemos a conta de quantas vezes tivemos que desmanchar a trama porque nos puxaram o fio. Desistir das coisas é dolorido quando o sonho é forte, vivo, toca nosso desejo de ser aceito e compreendido em nossas individualidades ou necessidades. Ser confundido com outro filho, com outra pessoa, decerto deixa um eco de inexistência, como se ninguém nos enxergassem como realmente somos. Essa dor é irreversível. Mas talvez nos faça mais expressivos, mais afirmativos e fortes, a ponto de transformar em texto um desejo, fazendo um exorcismo da frustração, ao mesmo tempo em que seguimos cavalgando em outros cavalinhos brancos. (FONTE; A jornalista Célia Musilli está em férias. Neste mês, serão reproduzidas na Folha 2, algumas de suas crônicas já publicadas e que tiveram maior acesso pelos leitores. Crônica de CÉLIA MUSILL, celia.musilli@gmail.com escritora e jornalista, caderno FOLHA 2, página 2, coluna CÉLIA MUSILLI, 8 e 9 de julho de 2017, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).   

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