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domingo, 30 de abril de 2017

TEMPOS BRUTOS

   O romantismo morre um pouco mais com a perda de Jerry Adriani e viceja o ‘sertanejo bruto’



   Morreu, no último domingo, um dos ídolos românticos da Jovem Guarda. Jerry Adriani era daquele tipo que “as mães queriam para genro”. Bonito, comportado, cantava bem e tinha voz para gravar hits piegas que, no momento, todos gostam, como “Doce doce Amor” . A música evoca outra qualidade do cantor: a generosidade, para quem não sabe foi ele quem descobriu Raul Seixas, que compôs a canção, em Salvador: Antítese dos bem comportados, o roqueiro tinha uma banda chamada As Panteras quando Jerry Adriani, convidado para tocar na capital baiana, observou que Raulzito levava jeito para o sucesso e tentou convencer o chefão de uma gravadora a lançar um disco dele. A tentativa frustrou-se, mesmo assim Raul Seixas passou a ser produtor dos discos de Adriani, numa parceria que durou mais de cinco anos e acabou revelando o roqueiro ao Brasil. 
   Antes de encarnar o romântico da Jovem Guarda, Jerry Adriani gravou músicas italianas. No seu primeiro disco “Italianíssimo” (CBS/1964) soltava a voz em canções como “abbronzatíssima” ou “Um Baccio Piccolíssimo”, porque no tempo da inocência tudo era mesmo discreto, pequenininho, então bastava um beijinho.
   Todo essa conversa é para dizer que o tempo da inocência se esvai um pouco mais com a morte de Jerry Adriani. Dos anos 60/70 temos as letras românticas de canções tão ingênuas que até vovó ouvia na sala, embora estranhasse o sacolejo do iê-iê-iê. No máximo, se mandava “tudo para o inferno”, mas as canções de Jerry Adriani e outros ídolos, com Wanderley Cardoso, estavam ali para recolocar o sofá no lugar. Das gravadas por Adriani, temos doçuras faladas ou cantadas nos ouvidos das moças: “Doce, doce amor/Onde tens andado/Diga por favor/Doce, doce amor”, composta por Raul Seixas. Ou então “Gioconda”, de Hyldson: “Gio, Gioconda/Bem que eu tentei/ Esquecer de você/ Mas fracassei”. 
   Todas músicas de amor e abandono, mas sem o viés que amplifica a malícia. No lugar do erotismo forçado havia a afetividade de quem curtia andar de mãos dadas: “Oh querida relembre/ Os momentos tão felizes/ Que juntinhos passamos Sob a luz do luar,” versão de uma balada de Chuck Howard (“Don’t Let Them Move”).
    Agora comparem isso com a sofrência do sertanejo universitário ou, pior, do “sertanejo bruto” que faria vovó pular atrás do sofá e tapar os ouvidos enquanto o neto “não desligasse essa porcaria”, com toda razão. 
    Não foi só Jerry Adriani que morreu, ganhou atestado de óbito o romantismo da distante Jovem Guarda que foi somando camadas de MPB até desembocar num gosto duvidoso. 
   Pensem por exemplo em letras de músicas gravadas por João Carreiro e Capataz : “Tudo que aparece na TV minha muié qué fazê” (Bruto, Rústico e Sistemático); Bruno e Barreto: “...todo fim de tarde minha galera me aciona/ 
   Era pra tomar uma, mas de novo deu em zona “Farra, Pinga e Foguete ) ou Antony e Daniel: “A química que rolou entre a gente/
   Você tocou minha boca e o meu corpo ficou muito quente” (Eu Te Amo Pinga).
   Da sofrência à malícia apenas um passo e, às vezes, um escorregão feio como na música “Como é que o Bruto Faz”, da dupla Davi e Fernando: “Eu vou tirar a marra dessa potranca/ Eu vou mostrar pra ela que aqui sou eu quem manda”. Fico pensando o que se passa na cabeça das mulheres que cantam e dançam um hit desses, com bracinhos pra cima, jogando o corpo nos shows dos rodeios até virar a potranca que o macho não sabe se monta ou laça. De olhos nos olhos ninguém mais fala e acho que mora aí a indiferença, de que todos se queixam, provocada pelos tempos brutos. (Crônica da jornalista e escritora CÉLIA MUSILLI, celia.musilli@gmail.com página 2, coluna CÉLIA MUSILLI, caderno FOLHA 2, 29 e 30 de abril de 2017, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).

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