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domingo, 8 de janeiro de 2017

DANÇA QUEM OUVE A MÚSICA



   Escritores costumam ser desastrosos como parceiros de dança, mas já me deparei com exceções



   Estamos acostumados a ver escritores como seres concentrados, às vezes sisudos, pouco dados a atividades físicas. No plano das artes são estupendos críticos de cinema, além da literatura, gostam especialmente de música, mas conheço poucos que se atrevem a dançar. 
   Na convivência com alguns, percebi o quanto sofrem quando são obrigados a dançar por alguma circunstância, numa festa entre amigos, em boates onde todos sacodem o corpo ou quando são pegos em algum espetáculo de teatro, nas primeiras filas da plateia, por algum ator descontraído. Nestas ocasiões já os vi vermelhos de vergonha, recusando-se ao par de deux ainda que a atriz que os tire para dançar seja linda e desenvolta, o que só piora a situação. 
   Na semana que passou, pesquisando fotos do escritor guatemalteco Miguel Ângel (1899-1974), depare-me com uma imagem dele dançando. Lépido, possivelmente aos 60 anos e com pelo menos cem quilos, na foto ele demonstra acompanhar o ritmo com desenvoltura – não sei se era rumba, salsa ou qualquer outro ritmo latino-americano desses de tirar faísca do chão. Pernas para um lado, braços para outro, como um Fred Astaire da Guatemala, ele acompanha uma morena que está logo à sua frente, com o corpo em posição de quem é habitué dos salões. Ambos estão rodeados de jovens e crianças, o que me faz pensar que se tratava de uma festa em família ou uma festa popular. 
   Para completar, encontrei no mesmo nicho fotográfico o francês Albert Camus, possivelmente curtindo um rock, o colombiano Gabriel Gárcia Márques – semelhante a um pavão no ato do acasalamento com uma linda parceira de baile – e, por fim, Ernest Hemingway dançando coladinho uma música que imagino ser do repertório orquestral de Glenn Miller, porque imaginação não me falta
Até me deparar com essa leva de escritores dançarinos, só me lembrava de ter visto a foto do cubano Pedro Juan Gutiérrez sambando na Boca do Lixo, em São Paulo, e uma foto célebre do poeta norte-americano Allen Ginsberg na qual ele parece tocado por Krishna num cortejo de rua.
   No mais, meus amigos escritores mais próximos, e digo isso com minhas desculpas antecipadas, não passam de pernas de pau nos quais a gente tem vontade de bater quando sai com eles no salão. 
   Mas há lembranças ternas, como a de estar na plateia de um espetáculo da performer Maura Baiocci, em 2015, e na cena final ter sido surpreendida com o restante do público com uma interpretação romântica do excêntrico Iggy Pop: “ Les Freuilles Mortes”, tocada para que todos dançassem. Para a minha sorte, tinha a meu lado o poeta Claudio Willer com quem dancei num desses momentos artísticos inesquecíveis. Discreto, porém talentoso, ele me deixou à vontade para “bailar” e assim protagonizamos um improviso. 
   Por isso, confesso que não sou dançarina exímia nem sei dançar bem a dois, sou da geração que dançou sozinha, entendendo-se, nesse sentido, a ambiguidade da expressão “dançar”. Porque “dançamos, sim, em quase tudo, e nos divertimos também.
   A frase mais significativa que conheço sobre a dança é do filósofo Friedrich Nietzsche: “E aqueles que foram vistos dançando foram jugtados insanos por aqueles que não podiam escutar a música.”
   Perfeito, dança quem ouve a música e assim funciona para todas as atividades humanas. Até por isso, e, primeiro lugar, melhor afinar os ouvidos. (Crônica escrita por CÉLIA MUSILLI celia.musilli@gmail.com jornalista e escritora, páginas 2 e 3, caderno FOLHA 2, coluna CÉLIA MUSILLI,  7 e 8 de janeiro de 2016, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).

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