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domingo, 1 de janeiro de 2017

A ARTE DE ATRAVESSAR O TEMPO


   No réveillon abrimos as passagens do tempo, chegando mais leves a outro ano

   No Ano Novo abre-se a passagem que nos tira da imobilidade. Numa espécie de mágica, tudo concorre para que a gente volte a acreditar nos sonhos, ainda que os últimos 365 dias não tenham sido perfeitos, passamos uma borracha no tempo quando os ponteiros se cruzam e abrimos caminho para outro janeiro. 
   O tempo é uma criação humana que provoca desafios. Se tomamos ou perdemos velocidade mudamos a condição do tempo, podemos chegar a outro planeta em horas ou anos. Mas o tempo é causa de muito desassossego, muita gente luta com ele, contra a ideia de envelhecer, contra a ideia dos filhos crescerem e nos sentirmos mais sós. Aprendi que viver o presente é o melhor antídoto para esse tipo de angústia. Buscar dentro de si uma leveza sem passado e sem futuro, deixar-se ficar no aqui e agora, procurado pelos sábios como um ponto de paz. 
   No presente há sempre alguma coisa significativa para chamar nossa atenção, ainda que seja simples, ainda que seja tola, ainda que seja apenas um flash, como os meninos que vejo correndo atrás da bola num parque. Se a cena me absorve, se me deixo levar pela ideia de quantos pés passaram pelas bolas em parques distantes, em campos perdidos na infância, tomo para mim a feitura do tempo.
   Se ao contrário, entro em devaneio para pensar como minha nave particular pode chegar ao futuro, inventando um mundo que não cabe na realidade, também ludibrio o tempo. 
   Mas ao nos entregarmos cotidianamente ao desassossego, tentando encontrar fórmula para saber o que virá, preocupados com a antecipação do futuro procuramos videntes, as cartas, o tarô, o horóscopo, tudo que possa nos dar uma espécie de controle do tempo. Na realidade, quando nos fazem uma previsão muitas vezes passamos a viver em função dela, à espera de amores, à espera de filhos, à espera de uma viagem. Particularmente, adoro quando uma vidente me aproxima dos navios, dos aviões que vão me levar a um país distante. Eles quase nunca vêm, mas a imagem do voo ou das águas me leva também a outro lugar que a previsão constrói como uma possibilidade. Mas nunca fiquei infeliz porque nada disso aconteceu. Às vezes sou feliz pelo que inventei ou foi inventado. É isso que nos mantém no ar e na leveza. 
   Em compensação conservo com carinho a imagem de alguns réveillons na praia, do jeito que gosto, pisando na área, porque não me alegro com sapatos que machucam. Não acho chique passar o Ano Novo equilibrando-se num salto quinze, com um laço incômodo, uma saia justa que me tira o conforto de mexer as pernas para onde bem entender. O Ano Novo é tempo de abrir caminhos, não de ficar imobilizados, recusem os apertos. Há muitos anos libertei-me do excesso de vaidade em troca da espontaneidade e da alegria autêntica. 
   Neste réveillon estou mais interessada nas coisas quase impossíveis, se as observarmos pela ótica da estrita realidade. Mas há sempre um rasgo para o campo dos sonhos, é no devaneio que me aproximo das delicadezas. Então, que venha 2017 nas asas de uma borboleta noturna, no brilho de uma estrela cadente que desaparece como o ano que passou. Que venha a possibilidade de escrever na água, como fazem os japoneses, adaptando-se a toda forma líquida de vive em harmonia. Ou então, que sejamos etéreos como os anjos. Nestes pequenos retalhos de sonho pulsa o tempo, não aquele que queremos guardar numa garrafa para que a gente não envelheça, para que os filhos não cresçam, para que os amores não terminem, mas aquele que nos chama para dançar com as nuvens passando com tranquilidade para o Ano Novo. 
   Que em 2017 se realize o desejo que vale por todos: a alegria de viver um dia de cada vez. (Crônica escrita por CÉLIA MUSILLI, celia.musilli@gmail.com, jornalista e escritora, páginas 2 e 3, caderno FOLHA 2, coluna CÉLIA MUSILLI, 31 de dezembro de 2016 e 1 de janeiro de 2017, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).

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