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domingo, 29 de janeiro de 2017

50 TONS DE CINZA

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   Ao apagar grafites, cobrindo-os com tinta monocromática, prefeito de São Paulo erra o alvo da popularidade

   Em 2018, o prefeito João Doria e parte da população de São Paulo possivelmente irão correndo ver a obra do grafiteiro nova-iorquino Jean-Michel Basquiat no Masp dizendo ”Oh! Ah!”. Até a mostra, já divulgada pela mídia, muitas camadas de tinta cinzenta encobrirão os grafites da capital paulistana, numa ação que o novo prefeito chama de “Cidade Linda”. Na verdade, trata-se do velho dilema entre a arte de rua e a arte de museus e galerias que se torna domesticada – ou civilizada – tão logo seu autor se torne famoso.
   Basquiat é um dos grandes nomes das artes plásticas contemporâneas, mas sua origem é o grafite, linguagem que levou para telas em trabalhos instigantes e coloridos. Parte de sua história pode ser a mesma de um artista pouco conhecido, um anônimo que não alcançou a condição de artista de galeria, cujas obras valem milhões de dólares depois que o sujeito morre ou passa a vida tentando emplacar sua arte. 
   O fato é que Doria errou o alvo, para embelezar a cidade é quase certo que teria cem por cento de aprovação se desentupissem os bueiros ou apresentasse um plano para evitar as enchentes. Mas o prefeito visou logo o grafite, aproveitando a onda de raiva que cerca as pichações que não têm nada a ver com o grafite, embora ambas sejam linguagem de rua, transformando os muros em mídia. 
   O grafite em São Paulo é uma das marcas registradas da cidade desde o fim dos anos 70, quando apareceram os primeiros artistas que se multiplicaram nas décadas seguintes. Para uma cidade poluída e cinzenta, a alegria das cores sempre foi um ponto de atração, mais que isso, um alívio para quem vive com muros, paredões, túneis, passarelas, muito asfalto e concreto, construções que acabam dando às cidades um aspecto prisional invocando a necessidade de segurança, mas sufocando o sentido de liberdade ao mesmo tempo.
   O grafite contemporâneo é arte que nasceu da cultura alternativa em grandes centros urbanos. O artista britânico Banksy foi um dos pioneiros na cidade de Bristol, considerada um polo de cultura independente não só nas artes visuais. Muitos afirmam que seu nome real é Robbin Gunningham e ele passou a usar o pseudônimo Banksy justamente para escapar das perseguições. Assim como em São Paulo, esta semana, funcionários da prefeitura de Bristol cobriram com uma grossa camada de tinta preta os grafites de Banksy nos anos 80. A ideia era lidar com as pichações , mas acabaram atacando o grafite até que veio a retração do prefeito que reconheceu o valor deste tipo de arte. 
   Algo parecido aconteceu com João Doria que já promete um grande “festival de grafite” na capital paulistana depois de ser amplamente criticado por apagar os muros da Avenida 23 de Maio – considerada a maior galeria de grafites da América Latina. 
   Em Londrina, em 2014, atitude parecida foi tomada pelas autoridades, mas o grafite, que existe aqui desde os anos 90, sobreviveu ao embate e hoje temos na cidade muros que mostram a importância da resistência que não passa apenas por leis, mas por vontade. Uma parte desta história e de seus artistas estão na edição de hoje. Na matéria da página 4 procuramos conceituar grafite e pichação em seus pontos de encontro e divergência, sempre lembrando que o que torna a arte de rua um manifesto é o fato de tornar visíveis os anseios políticos, culturais e estéticos dos “invisíveis” separados por grandes fossos sociais. Fora a pichação de espaços históricos, monumentos e outros atos que danificam ou se sobrepõem à obra de outros criadores, toda arte e manifestação de rua são bem-vindas. E se sua condição é efêmera, seu tempo de existência e remoção devem partir da decisão do artista em comum acordo com os administradores e não da autoridade que usa a tinta para encobrir o que, no fundo, não compreende e segrega. O Basquiat incesado no Masp e nos museus do mundo nunca aprovaria a censura aos muros. (Crônica escrita por CÉLIA MUSILLI, celia.musilli@gmail.com jornalista e escritora, página 2 e 3, coluna CÉLIA MUSILLI, caderno FOLHA 2, 28 e 29 de janeiro de 2017, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).    

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