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domingo, 7 de agosto de 2016

SOBRE JOGOS E HERÓIS


   Nestes tempos de Brasil dividido, o jeito é saltar sobre os obstáculos

   As Olimpíadas começaram. Até 21 de agostos veremos saques, arremessos, saltos, dribles, passes, ataques, defesas, corridas, disputas em raias na terra e na água, pesos-pesados e leves compondo a ideia de uma competição esportiva que chega ao século 21 sob a inspiração grega, origem dos sonhos e dos jogos, dos deuses e dos mortais. 
  Dos jogos da Antiguidade, realizados na cidade de Olímpia – daí a origem do nome Olimpíadas – à Idade contemporânea, a ideia de que os jogos foram criados por Hércules – herói da saga dos doze trabalhos difíceis – prevalece como mito da realização e superação das dificuldades. Afinal, diz a lenda que Hércules não foi chamado para corridas nem para arremessar discos ou martelos. Um dos trabalhos do herói foi limpar o curral de Olímpia que não tinha faxina há trinta anos, embora nele vivessem milhares de animais. Nestes tempos de Brasil dividido e obscuro, também teremos que saltar sobre os obstáculos, dar passes, driblar, defender e atacar o que consideramos bom ou ruim, sem esquecer que uma faxina completa ainda nos aguarda no curral do poder, muito além dos jogos. 
   Nas competições veremos nossos heróis nacionais – de Neymar a Darlan Romani, de Fabiana Murer a Kauisa, de Marilson Gomes a Codó – fazendo o máximo para manter o orgulho de tantos outros Darlans, Kauisas e Marilsons do Brasil, esta nação em que nos batizam com nomes esquisitos, misturando línguas e costumes. 
   Apesar de tudo e da faxina pela metade, ainda vibramos por nossos atletas. A passagem da tocha olímpica pelo Brasil despertou emoções e paixões esquisitas. Houve quem caiu no choro, houve quem apagou a tocha demonstrando que a ideia de aguardá-la com um balde d’água não era só piada, mas o mais sincero protesto por estarmos em festa em tempos lúgubres quando os saques dos cofres públicos, os dribles na confiança e os saltos dos representantes políticos nos mostram que nem tudo é alegria e que faremos uma espécie de pausa embora todo mundo saiba que nosso voo está em franca turbulência.
   Eu sou daquele tipo que chora por qualquer coisa, na passagem da tocha olímpica saí como criança na rua para ver e aplaudir. Naquele momento só o fogo encantava mais que as oposições e o tempo de desafetos. Se na Antiguidade os jogos eram abertos com um sacrifício de animais a Zeus, penso que no Brasil também nos antecipamos nos ritos em que sacrificamos algumas coisas – incluindo crenças e amizades – e agora vamos aos saltos, às corridas e às lutas tentando abrir, mais uma vez, possibilidades de vitória apesar dos revezes morais e econômicos. 
   As Olimpíadas originais, depois de um tempo vigoroso de competições caiu no esquecimento. Foi como se a deus Lette tivesse cruzado o rio da História para varrer memórias de heróis e atletas cuja lembrança só renasceu bem mais tarde, na Idade Moderna, quando em 1890 o Barão de Coubertin, que era suíço e pedagogo, resolveu retomar os jogos.
   Dizem que há sempre outro rio que resgatam lembranças, chama-se Mnemósine ou memória, e os gregos antigos acreditavam que no seu leito tudo renascia para ser recordado ainda que se passasse muito tempo. 
   Talvez as Olimpíadas tragam ao Brasil a possibilidade de esquecermos o que passou para renascermos de outra forma. Ou talvez isso seja apenas um sonho que é outro artifício dos deuses. 
   No momento, apesar de tudo, acredito na pausa da pacificação e nas águas que em vez de turvar despertam a memória de olharmos sempre para o lado melhor, nadando para a margem sem heróis, mas como cidadãos de um novo tempo. (Crônica da jornalista e escritora CÉLIA MUSILLI celiamusilli@gmail.com página 4, FOLHA 2, coluna CÉLIA MUSILLI, domingo, 7 de agosto de 2016, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).

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