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domingo, 24 de julho de 2016

UM ROTEIRO DE AROMAS




   As cidades têm cheiros que fazem parte de um bairro ou podem aparecer numa situação momentânea. Isso me fez pensar num roteiro de aromas que, na última quarta-feira, me pegou de surpresa no centro de Londrina. 
   Estava numa doceria na Rua Pará com cheiro característico de bolos, uma mistura de maçã e canela que, acredito, as cozinheiras fazem questão de deixar como uma isca aos transeuntes. Cheiro de bolo é capaz de perfumar uma rua inteira e atrair a clientela.
   Saí de lá e desci a Rua Pará, perto do Colégio Mãe de Deus – onde havia um coro ensaiando para o Festival de Música – senti cheiro de loja de sapatos, vejam só, memória da infância que me bateu naquela momento sem explicação. Num acesso de imaginação, pensei que as freiras podiam estar engraxando calçados ou talvez usando no assoalho um produto químico. De qualquer forma, isso me despertou uma lembrança da infância quando dei um show porque queria um sapato vermelho que acabei ganhando, depois de protagonizar uma sessão de choro que foi uma das mais autênticas de toda minha vida. 
   Já que estava naquele quarteirão, dobrei a esquina, fui até a capela do Colégio Mãe de Deus que não visitava há tempos, é nela que fica a imagem de Nossa Senhora de Shoenstatt, uma das mais bonitas da cidade. O jardim ao redor tinha cheiro de pinheiro e outras plantas que não identifiquei. A capela cheirava a rosas e às velas queimadas ali frequentemente. 
   Já era de noite quando fui embora e subi a rua Professor João Cândido. Perto de dois edifícios antigos, o Princesa Isabel – onde sempre quis morar – e o José Américo Godoy – nome que deve ser de um pioneiro – senti cheiro de comida, bife e feijão recém cozido. Me bateu a nostalgia que Arrigo Barnabé deve ter sentido quando compôs a valsa “Londrina” , só faltou o avião sobrevoando a cidade e a voz de alguma cabocla saindo do rádio. Aquilo era cheiro de almoço de roça, que se repete nalgumas casas ao anoitecer, aquelas que ainda sobrevivem ao “delivery” de comidas prontas. Um cheiro antigo como outra evocação da infância. 
   Ainda na rua Professor João Cândido passei a sentir cheiro de óleo diesel, nenhum a explicação plausível até avistar o posto de gasolina logo ali na esquina. 
   O cheiro ruim logo seria substituído por outro, do restaurante de comida árabe que atrai com seu aroma de tempero, mistura de óleo, azeite e especiarias que nos toca como um perfume das Mil e Uma Noites de gente devotada às fábulas da culinária típica. Londrina, onde sempre ferve um caldeirão cultural., põe para ferver quitutes de várias nacionalidades, cujo cheiro se mistura àquele típico do trânsito. Mas é pelas frestas sensoriais que a gente seleciona os melhores aromas e os roteiros que entram pelo nariz se constroem também pela força da fantasia.
   No meio de tudo, o cheiro de álcool e acetona das farmácias é um toque de assepsia incomum numa cidade que nos dispõe a um exercício de memórias. Só as comidas exalam cheiros exatos, sem o risco de parecerem sapatos novos como poderia sugerir uma panela de botinas ou de sandálias cozidas com pimenta. O resto faz parte de uma sensação momentânea, como perfume de mulheres, atmosferas de bares, o toque ácido de um resto de cerveja.
   Quando cheguei em casa, o pátio do prédio cheirava à limpeza das quartas-feiras, um cheiro de lar que subiu comigo pelo elevador. Já no meu quarto, o cheiro era muito pessoal, aquele que só os quartos têm e não estão em nenhum roteiro urbano, porque são partes da intimidade que guardamos para a hora do descanso. Naquela noite sonhei com pinheiro enfeitados com maçãs e cascas de canela. Isso deve ter um significado e merecer o divã de um psicanalista, mas não me enrolo mais com sonhos. Já basta meu excesso de fantasia cotidiana. (Crônica da jornalista e escritora CÉLIA MUSILLI, celiamuisilli@gmail.com página 4, caderno FOLHA 2, espaço coluna CÉLIA MUSILLI, domingo, 24 de julho de 2016, publicação do jornal FOLHA DE LONDRINA).

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